Saúdem Andrônico e Júnias, meus parentes que estiveram na prisão comigo. São notáveis entre os apóstolos, e estavam em Cristo antes de mim – Romanos 16.7 [NVI]
Com a recente decisão da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil para aceitar mulheres como integrantes do ministério pastoral na denominação, pessoas de todo o Brasil passaram a se perguntar a respeito da validade de tal decisão. Blogs, Sites, Páginas do Facebook foram criadas para dialogar sobre o assunto. Até mesmo Augustus Nicodemos, um pastor presbiteriano, sentiu a necessidade de apresentar sua opinião a respeito do assunto no artigo Resposta a Argumentos Usados em Favor da Ordenação de Mulheres. Entre os argumentos respondidos pelo Reverendo Augustus Nicodemos encontra-se a questão sobre Júnias: Era ou não era ela uma apóstola? Se Júnia era de fato uma apóstola, isso não seria uma excelente evidência das escrituras sobre a validade do ministério pastoral feminino na igreja local?
A questão é de fato complexa e precisa ser analisada com atenção. A primeira evidência da complexidade do assunto encontra-se na falta de clareza nas traduções conhecidas em português. A ACF, bem como as mais antigas traduções em português, verte o texto dando a entender que Júnia é de fato um homem: “Saudai a Andrônico e a Júnias, meus parentes e meus companheiros na prisão, os quais se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo“. Usando versões como essa, muitos cristãos sinceramente acreditam que Paulo aqui saúda a dois homens que no passado foram companheiros de prisão. Tomamando por base que todos pronomes são masculinos, muitos tendem a ver tanto Andrônico como Júnias como homens. De fato, a tradução oferecida aqui não é clara o suficiente para se expressar com confiança nenhuma opinião sobre o assunto.
A segunda evidência da complexidade do assunto é a divergente opinião dos comentaristas sobre o significado do texto.
a. A vasta maioria dos comentaristas parece não ter certeza. R.C. Sproul, por exemplo, afirma em seu comentário: “É duvidoso se nós podemos saber com certeza se Júnia era um homem ou uma mulher, por que a forma que Paulo usa aqui poderia ser tanto masculino coom feminino. Se é um homem, o nome é Júnias; se é feminino, é Júnia” [Sproul, R. C. The Gospel of God: An Exposition of Romans, p. 251]. Similarmente Spence-Jones afirma que é incerto se o texto se refere a um homem ou uma mulher, mas que se for uma mulher ela é certamente considerada como esposa de Andrônico [Spence-Jones, H. D. M., ed. The Pulpit Commentary: Romans. p. 455]. John Witmer acredita que se Júnia descreve uma mulher a saudação é direcionada a um casal, mas não tem certeza se o termo é masculino ou não [Walvoord, John F., and Roy B. Zuck, Dallas Theological Seminary. The Bible Knowledge Commentary: An Exposition of the Scriptures. Vol.2, p.499-500].
b. Alguns parecem certos de que Júnias era um homem, mas sem certeza se ele era um apóstolo ou não.Calvino defende que o texto fala que ambos Andrônico e Júnias são chamados apóstolos aqui, mas defende que o uso do termo aqui é abrangente e que não os inclui no ministério apostólico da igreja primitiva. Deve-se admitir por outro lado, que Calvino nem se quer debate o gênero de Júnias, mas o tem como homem pela própria descrição do mesmo como missionário [Calvin, John, Commentary on Rormans]. Johann Bengel, por sua vez, acredita que ambos devem ser contato entre os apóstolos pois eles são apresentados como estando no evangelho antes de Paulo e que por isso devem ter visto o Senhor. Isso não os incluía entre os 12 apóstolos, mas os incluía no ministério apostólico da igreja primitiva. Contudo, Bengel entendia que ambos eram homens [Bengel, Johann,Gnomon of the New Testament, p.365-6]. John Peter Lange reconhece a possibilidade de o termo ser feminino, mas defende que é mais provável que o termo seja abreviação do nome masculino latino Junianus. Lange o faz seguindo dois outros comentaristas, Meyer e Thouluck. Lange ao contrário de Calvino e Bengel, entretanto, defende que o homem Júnias era um apóstolo visto que Paulo nunca usa o termo de modo abrangente [Lange, John Peter, Philip Schaff, F. R. Fay, J. F. Hurst, and M. B. Riddle. A Commentary on the Holy Scriptures: Romans. p.447-8].
c. Outros parecem certos de que Júnia era uma mulher, mas não a entendem como parte do ministério apóstólico. Robert Utley parece convencido de que, apesar da complexidade da questão, Júnia descreve uma mulher. Ele também entende que o termo apóstolo é usado nesse texto de maneira restritiva, especialmente em função do uso do artigo acompanhado o termo grego. Entretanto, entende que a frase ‘entre os apóstolos’ a descreve não como parte do grupo apostólico, mas como alguém notável para a comunidade apostólica .[Utley, Robert James. The Gospel According to Paul: Romans]. Similarmente, Robert Mounce também entende que o termo usado por Paulo aqui descreve uma mulher chamada Júnia, mas defende que o fato ter sido chamada de ‘exemplar entre os apóstolos’ não a inclui entre os apóstolos, mas como alguém que participa do ministério missionário da igreja primitiva. Nesse sentido ela estaria em igualdade a Priscila, esposa de Áquila [Mounce, Robert H. Romans. Vol. 27. The New American Commentary. p. 275]. Henry Alford parece ter a mesma opinião, entretanto oferece um tratamento mais extensivo com respeito as diferentes possibilidades [Alford, Henry, The New Testament for English Readers, p.Vol.3 p.130-1].
d. Por fim, existem aqueles que estão certos de que Júnia era uma mulher e uma apóstola. Eldon Jay Epp afirma que em sua opinião é indubitável não somente que Júnia[s] era uma mulher como também era contada entre os apóstolos [Epp, Jay Eldon, Junia, the first female apostle, p.81]. James Dunn afirma que se pode concluir com confiança que um dos apóstolos do período de fundação do Cristianismo era uma mulher casada [Dunn, James D. G. Romans 9–16. Vol. 38B. Word Biblical Commentary, p.895]. Carolyn Osiek define Júnia como ‘uma dedicada seguidora do movimento de Jesus Cristo da primeira geração que era engajada em tempo integral com o ministério apostólico, provavelmente com seu marido’ [Pederson, Rena, The Lost Apostle, p.22] Osiek está convencida do gênero e função da pessoa descrita em Rm16.7, sua única dúvida está relacionada ao fato se ela era casada ou não. A Rev. Kathryn J. Riss compartilha a mesma convicção e defende que Júnia era uma mulher contada no ministério apóstólico e que demonstra sua validade como tal pelo fato de ter sido aprisionada por causa do evangelho [Riss, Kathryn, The Apostle Junia].
A terceira evidência da complexidade do assunto é o ambiente cultural dos nossos dias. Diferente de outros momentos da história, nossos dias são marcados por um intenso diálogo [debate] relacionado ao papel da mulher no ministério impulsionado pelo feminismo da nossa era. Nesse cenário, qualquer tentativa de apresentar uma opinião que manifeste a prioridade masculina no ministério soa como machismo, do mesmo modo que, qualquer manifestação de uma opinião contrária ao consenso evangélico se parece com feminismo, ou com alguma forma de liberalismo. Um detalhe interessante a ser notado, é que o debate sobre o gênero de Júnia[s] aparece apenas nos comentários mais recentes. Essa era uma questão de menor ou insignificante em grande parte dos antigos comentaristas. Entretanto, nos nossos dias esse é um assunto importante que precisa ser tratado com seriedade e profundidade.
Por isso, nesse post pretendo analisar e oferecer uma resposta substancial para duas questões importantes sobre o sentido e significado desse texto no cenário do ministério pastoral feminino na igreja local nos nossos dias: (1) O termo grego usado para descrever Júnia é feminino ou masculino? (2) Júnia era de fato uma apóstola ou alguém estimada pelos apóstolos?
1. A questão do gênero: Júnia (fem) ou Júnias (mas)?
A verdade a respeito do gênero de Júnia[s] é muito mais simples e complexa do que alguns pensam: a diferença entre um nome masculino e feminino é apenas uma questão de acentuação. O termo grego Ἰουνιαν é o termo usado por Paulo, e se tiver um acento agudo na paroxítona o termo é feminino [Ἰουνίαν], se tiver o acento circunflexo na oxítona [Ἰουνιᾶν] o termo é masculino. A simplicidade da diferença faz com que o assunto se torne extremamente complexo, especialmente pelo fato de que os manuscritos gregos só passaram a ser acentuados depois do sétimo século. Diante dessa dificuldade, como podemos chegar a uma conclusão razoável?
Existem cinco fontes de informação disponíveis para nos auxiliar a encontrar uma resposta razoável para essa pergunta. A primeira delas é a própria morfologia do termo Ἰουνιαν e o que se pode concluir da própria palavra no que se refere ao gênero da mesma. A segunda fonte de informação são as evidências da tradição manuscrita do NT. Nela poderemos encontrar evidências de como o texto foi entendido na história da igreja e como ela nos ajuda a compreender o sentido do texto. A terceira é a literatura grega do primeiro século. Nela podemos encontrar como o termo foi empregado e que pessoas ela descrevia. A quarta é a literatura latina, pois nela podemos investigar se o nome usado em Rom.16.7 pode ser encontrado e a que gênero ele se refere. E por fim, devemos observar como os Pais da Igreja interpretaram esse texto e como a interpretação deles nos ajuda a melhor compreender o dilema apresentado aqui.
a. Morfologia do termo: A grafia não acentuada do termo poderia indicar um nome tanto masculino como feminino. A terminação aparentemente feminina do termo não necessariamente indicaria que o nome descreve uma mulher, pois em grego Koine existem substantivos nominais da primeira declinação [i.e. com terminação feminina] que descrevem nome de homens. Em Rom.16.14-15 encontramos três nomes masculinos que são declinados como substantivos femininos: Pátrobas [Πατροβᾶν], Hermas [Ἑρμᾶν] e Olímpas [Ὀλυμπᾶν]. Outros exemplos como esse são encontrados por todo o NT [Ἀντιπᾶς (Ap.2.13), Θευδᾶς (At.5.36), Ἀρτεμᾶς (Tt.3.12), Ζηνᾶς (Tt.3.13), Δημᾶς (Cl.4.14; Fl.1.24; 2Tim4.10) entre outros], e podem ser resultado direto de um sistema de abreviação de nomes comum no primeiro século [cf. BDF, §125, p.67-8].
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