Introdução
Há algum tempo abordei um amigo e irmão em Cristo para que tivesse mais cuidado com suas palavras, pois seu descontrole era evidente: suas sentenças eram sempre carregadas de palavreado e um linguajar inapropriado para um filho de Deus.[1] Como resposta, escutei: “eu não preciso de você para me alertar a ter cuidado com o que eu falo, pois para isso eu tenho minha mãe.”
A resposta deste irmão em Cristo foi, em sua forma e conteúdo, bastante imatura e possuía uma verdade que infelizmente não foi bem aproveitada por este meu colega: ele tinha uma mãe que podia orientá-lo, porém, nitidamente não aproveitou disso. Wiersbe disse:
“Feliz é a pessoa que teve uma mãe temente a Deus, que a alertou sobre o pecado; e mais feliz ainda é a pessoa que se atentou às suas advertências.” [2]
Provérbios 31 é um capítulo bíblico geralmente mais comentado, ensinado e conhecido em função do poema acróstico (vv.10-31) que refere-se à mulher virtuosa. Todavia, nenhuma mulher (e homem) que preza pela sabedoria divina pode negligenciar os conselhos da piedosa e zelosa mãe dos primeiros versículos (vv.1-9). As dicas, dadas especificamente para seu filho que ocupa o singular e nobre ofício de rei, são igualmente válidas e importantes para qualquer homem ou mulher que almeja desfrutar da sabedoria divina.[3]
Segue-se então um breve comentário de Provérbios 31.1-9: [4]
Comentário
Provérbios 31.1-9
1 Ditados do rei Lemuel; uma exortação que sua mãe lhe fez:
Como Agur (Pv 30), ninguém sabe mais do que o texto bíblico apresenta sobre este tal rei Lemuel, cujo nome significa dedicado a Deus. O v.1 pode ser entendido de uma forma diferente da apresentada pela NVI, como se Lemuel fosse de Massa, uma tribo arábica do norte.[5] Há uma lenda judaica que identifica Lemuel como Salomão, sendo este trecho bíblico um aviso de sua mãe, Bate-Seba, para ele em sem ofício. No entanto, não há evidências textuais que corroborem suficientemente para essa interpretação.
Outra aparente dificuldade do texto é gerada pela quantidade de diferentes traduções da palavra hebraica מַשָּׂא (maśśāʾ). Observe (em negrito):
- ARA: As palavras do rei Lemuel, rei de Massá, que lhe ensinou sua mãe.
- ARC: Palavras do rei Lemuel, a profecia que lhe ensinou sua mãe.
- NTLH: São estas as palavras solenes que a mãe do rei Lemuel lhe disse.
- VIVA: ESTES SÃO OS sábios ditados do Rei Lemuel, lições importantes que sua mãe lhe ensinou quando ele ainda era um garoto.
- LIT2009: Palavras do rei Lemuel, a profecia que lhe ensinou a sua mãe.
Em função da diversidade de opinião de eruditos bíblicos, fica difícil estabelecer o significado exato de מַשָּׂא neste contexto. Ainda assim, entenda que, nos profetas, essa palavra tem a conotação de juízo e sentença, quase sempre com exortações embutidas para o público alvo. Com a exceção da possibilidade de se entender a palavra como um local (vide ARA), sugestão minimizada pela acentuação do texto hebraico pelos massoretas, existem duas outras opções:
- Foco vertical: a mãe de Lemuel recebeu uma orientação da parte de Deus, uma profecia (oráculo). Suas dicas, na verdade, seriam dicas do próprio Senhor, alertas importantes para o reinado de Lemuel.
- Foco horizontal: a mais idosa e madura mãe de Lemuel, com base na sua experiência de vida e observações sábias, orienta seu filho com três principais dicas para seu reinado. (Pergunta especulativa: será que a mãe de Lemuel era a antiga rainha?)
Seja qual for dessas duas opções, debaixo do propósito do livro de Provérbios, ambas as interpretações convergem para o mesmo significado: palavras de sabedoria divina para o sucesso no proceder humano.[6] Mais especificamente neste caso, palavras de uma zelosa e sábia mãe, para o sucesso do reinado de seu filho rei.
As três sábias dicas da mãe do rei
Não foi comum nos provérbios bíblicos orientações que tivessem sido dadas pela mãe. Duas vezes o filho é orientado[7] para que se atentasse às palavras de sua mãe: Filho meu, ouve a instrução de teu pai, e não deixes o ensino de tua mãe (1.8); Filho meu, guarda o mandamento de, teu pai, e não abandones a instrução de tua mãe (6.20).
Este trecho é composto por três conselhos de caráter moral dados pela mãe do rei Lemuel para que seu governo fosse bem sucedido. Lemuel tinha tanto uma grande oportunidade quanto responsabilidade perante sua nação, também quanto perante o Rei dos reis, o Senhor soberano Yahweh.
De forma geral e simplificada, os temas abordados são:
- Mulheres;
- Bebida alcoólica;
- Justiça social.
Dica um: “Não use sua autoridade para a devassidão”
2 “Ó meu filho, filho do meu ventre, filho de meus votos,
3 não gaste sua força com mulheres, seu vigor com aquelas que destroem reis.
A repetição da palavra filho mostra a seriedade da mãe que piedosamente chama à atenção de “seu filho,” (possível tradução de filho do meu ventre). Associado a filho de meus votos, o texto indica o grande investimento da mãe na educação de seu filho no programa de Deus.
Não é, como nunca foi, difícil para um rei a oportunidade e tentação de gastar sua força com mulheres, tampouco seu vigor (derāḵeyḵā), termo que faz alusão a sexo (cf. 30.19). Muitos reis, inclusive em Israel, como Salomão, tinham haréns. Estes, além de uma distorção dos propósitos do poder monárquico, geravam grande despesa.
Em suma, a mãe de Lemuel o aconselha para ele não investir sua vida em mulheres que destroem. Alguns comentaristas sugerem que tal palavra (destroem) é uma forma indelicada de descrever a mulher, tendo como base sua estranha construção (Heb: לַֽמְח֥וֹת), bem como por ela se parecer com a palavra aramaica que significa concubina.
O exemplo histórico de Salomão é o ápice de qualquer ensino sobre o potencial calamitoso de se envolver com mulheres dessa natureza. Ainda que ele fosse o mais sábio entre todos os homens, Salomão deixou-se influenciar pelas mulheres de seu harém, mulheres de outras nações que eram proibidas por Yahweh, proporcionando que falsos deuses impregnassem a nação que havia sido escolhida e guiada pelo único e verdadeiro Deus. Sobre esta época, o autor de Reis diz acerca de Salomão: seu coração já não era mais dedicado ao Senhor, o seu Deus. (2Rs 11.4)
Dica dois: “Evite a bebida alcoólica”
4 “Não convém aos reis, ó Lemuel; não convém aos reis beber vinho, não convém aos governantes desejar bebida fermentada,
5 para não suceder que bebam e se esqueçam do que a lei determina, e deixem de fazer justiça aos oprimidos.
6 Dê bebida fermentada aos que estão prestes a morrer, vinho aos que estão angustiados;
7 para que bebam e se esqueçam da sua pobreza, e não mais se lembrem da sua infelicidade.
A segunda dica trata sobre manter a sobriedade para que o trabalho de estabelecer justiça seja adequado. Ao contrário do que alguns afirmam, o texto não sugere a proibição do uso de bebida alcoólica, como também não existem registros em corte alguma do Oriente Médio Antigo sobre sua proibição. No entanto, o texto admoesta profundamente que a bebida alcoólica não convém à liderança em exercício, tampouco deve ser objeto de desejo (desejar). Acredito ser prudente e correto entendermos o provérbio como uma orientação que vai além de reis e governantes, pois a chave do texto está no ensino de uma mãe piedosa e sábia que orienta seu filho para cumprir adequadamente com seu ofício, bem como para agir corretamente com seu conhecimento da aplicação da lei.[8] Os embriagados não conseguem trabalhar apropriadamente, tampouco discernir com a devida razão. Tanto o vinho quanto a bebida fermentada (possivelmente cerveja de cevada) proporcionam esquecimento (esqueçam) do que a lei diz e injustiça[9] para com os oprimidos (Heb: filhos da pobreza, expressão que significa os que eram pobres de nascença).
“A intemperança leva à egoísta desconsideração das reivindicações dos outros, a incapacidade de analisar as questões de forma imparcial e consequentemente à perversão da justiça.” [10]
Por outro lado, há casos em que a bebida pode ser administrada apropriadamente, como apresentam os vv.6-7. Atente-se para os dois propósitos e os dois públicos: para (1) aliviar dor física e (2) forte estresse mental (veja Sl 104.15), aos que estão (1) prestes a morrer e aos (2) angustiados (lit. amargurados na alma – LIT2009). A profundidade de alguém angustiado de acordo com a palavra hebraica מַר (mar) pode ser bem observada na histórica situação e pessoa de Noemi, que disse: Não me chamem Noemi, chamem-me Mara, pois o Todo-poderoso tornou minha vida muito amarga (Rt 1.20; grifos meus).
“Como restaurador ou medicamento, o vinho pode ser vantajosamente usado. Ele tem lugar na economia providencial de Deus.”[11]
Um estudo exaustivo nas Escrituras sobre o uso de bebida alcoólica destaca o cuidado que todo homem e mulher têm para com seu devido uso. As palavras de Jeremy Taylor salientam esse cuidado e concluem com propriedade esta segunda dica da mãe de Lemuel:
A embriaguez abre todos os santuários da natureza e descobre a nudez da alma, todas as suas fraquezas e loucuras, que multiplica os pecados e os descobre. Faz do homem incapaz de ser um amigo ou conselheiro privado, para ser público. Ele toma a alma de um homem à escravidão e aprisiona mais que qualquer vício que existe, porque desarma um homem de toda a sua razão e sabedoria, pela qual ele poderia ser curado. Isso comumente aumenta com a idade; um bêbado sendo ainda mais tolo e menos um homem.[12]
Nunca se esqueça de que a falta de sabedoria fará da licitude da bebida uma baita porcaria.
Dica três: “Use seu poder para ajudar o necessitado”
8 “Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados.
9 Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos dos pobres e dos necessitados”.
Para a mãe de Lemuel, o reinado de seu filho deve ter uma marca muito clara. Tal característica não é monumentos exuberantes, tesouros incontáveis ou um exército poderoso, mas uma justiça que se revela no zelo pelos que não conseguem defender-se, pelos desamparados, pelos pobres e necessitados.
Erga a voz é uma expressão (metonímia de causa) que significa servir como advogado num julgamento (NET Bible). Possivelmente foi por esta a razão[13] que a NVI escolheu traduzir לְאִלֵּ֑ם por [aqueles] que não podem defender-se. אִלֵּ֑ם significa literalmente mudo, como traduzido na ARA e ARC.
Desamparados (חֲלוֹף – único uso em todo o AT) significa os que estão falecendo, desaparecendo, pessoas com grande risco de morte. Assim, uma paráfrase apropriada para o v.8 seria: “Defenda os que não conseguem se defender; defenda os que estão padecendo.”
O v.9 é a repetição paralela do v.8, tão comum em Provérbios.
Amar o próximo é uma lei divina. Todos que querem estar debaixo da vontade de Deus devem atentar-se em interceder pelos que precisam de justiça. Em especial, isso deveria ser ainda mais e melhor observado entre os líderes das nações, as quais são fitadas pelo povo em busca de um padrão de conduta. A mãe de Lemuel o aconselha e lembra que um governo sábio não negligencia seu papel de zelar pelos pobres e necessitados.
Conclusão
Não creio que a mãe de Lemuel tinha a intenção de ser exaustiva em seus conselhos. Não há razões bíblicas nem históricas para acreditarmos que mulheres, bebidas e justiça eram as únicas dificuldades para o governo de um rei.
Ainda que eu não tenha lido ou visto minhas opiniões em outro lugar, acredito que outros pensadores compartilhariam comigo, que:
- Mulheres, bebidas e justiça não são áreas da vida que abrangem todas as dificuldades de uma monarquia. Guerra, por exemplo, é um tema que não está incluído nos conselhos da sábia mãe;
- Dentre as várias áreas para aconselhar, a mãe de Lemuel escolheu estas três porque entendia serem elas as mais importantes, talvez essenciais. Não podemos negligenciar que o texto foi originalmente escrito cerca de um milênio antes de Cristo.
- Acredito que as dicas para Lemuel são conselhos arquetípicos, ou seja, que serviam tanto para o rei Lemuel, que ela bem conhecia, quanto para qualquer outro monarca que quisesse ser bem sucedido no governo. Em outras palavras, são sugestões ideais e de valor inestimável para qualquer rei e, por extensão, para qualquer filho, ideia ratificada pelo propósito do livro de Provérbios.
- Especulo que foram apenas três dicas porque uma mãe sábia reconhece a dificuldade de comunicação que pode existir com seu filho. Geralmente, em minha humilde experiência, observo que os filhos, além de não prestarem a devida atenção (especialmente) às suas mães, possuem tremenda dificuldade de guardar muitas orientações. Assim, ao invés da mãe de Lemuel lhe oferecer dez dicas, preferiu ser bem concisa com as três que eram vitais.
Seguramente há outras observações sobre o texto das três sábias dicas da mãe de um rei. Espero que os comentários que compartilhei ajudem mais pessoas a aplicarem e exporem o texto corretamente.
Termino com as palavras do experto Wiersbe:
Feliz é a pessoa que teve uma mãe temente a Deus que o avisou sobre os perigos do pecado e, ainda mais feliz, é a pessoa que atendeu seus avisos.[14] – W. W. Wiersbe (1993)
[1] De fato, suas palavras eram inapropriadas para qualquer criatura de Deus.
[2] Wiersbe, W. W. (1993). Wiersbe’s Expository Outlines on the Old Testament (Pr 31:1–9). Wheaton, IL: Victor Books.
[3] Geralmente um provérbio, seja ele antigo ou novo, ocidental ou oriental, bíblico ou não, possui um caráter supracultural, ou seja, tem validade além da cultura em que foi criado ou desenvolvido. “Quem tem pressa come crú” vale tanto para brasileiros quanto alemães, árabes ou chineses. Os provérbios bíblicos possuem essa característica de forma indelével, pois além de serem cotidianas e perspicazes observações humanas, eles foram transmitidos (poeticamente) com a perspectiva da sabedoria divina.
[4] O texto padrão é da NVI.
[5] W. McKane, Proverbs, OTL (Philadelphia: Westminster, 1970). A acentuação dos massoretas é contrária a essa opção.
[6] Entenda sucesso em meus textos sempre da perspectiva divina (ou bíblica).
[7] Possivelmente pelo mestre e sábio pai.
[8] Entenda que a aplicação da lei, na teocracia de Israel, era a aplicação da própria vontade de Deus.
[9] A palavra justiça (דִּין), neste contexto, pode ser traduzida por “direitos legais.” (NET Bible)
[10] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). (1909). Proverbs (p. 596). London; New York: Funk & Wagnalls Company.
[11] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). (1909). Proverbs (p. 596). London; New York: Funk & Wagnalls Company.
[12] Holy Living,’ ch. iii. § 2
[13] Possivelmente somada com outra figura de linguagem, a hipocatástase (comparação implícita).
[14] Wiersbe, W. W. (1993). Wiersbe’s Expository Outlines on the Old Testament (Pr 31:1–9). Wheaton, IL: Victor Books.
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