Para muitos cristãos e ateus, a veracidade do Cristianismo e de suas afirmações está intimamente ligada à veracidade das escrituras. Por isso não é surpreendente que os mais contundentes ataques ao Cristianismo nos nossos dias sejam direcionados às escrituras. Se as escrituras não forem confiáveis, se seus ensinos não forem coerentes, se não forem inerrantes, logo os críticos dirão que também não pode ser inspirada: “Como um livro tão contraditório, incoerente e equivocado pode ser resultado de um Deus todo-conhecedor, todo-poderoso e interessado em se revelar aos homens?“, poderia se perguntar um cético.
Esse tipo de lógica fundada no conhecimento superficial das escrituras e da teologia cristã tem se espalhado e crescido na onda dos movimento ateu que cresce desenfreadamente no mundo. Nesse post vamos examinar um desses ataques populares e superficiais às escrituras com a intenção de auxiliar cristãos a lidar com a crescente oposição intelectual ao evangelho.
Anos atrás Chris Harrison e Christoph Römhild montaram um gráfico com 63,779 referências cruzadas no qual apresentou a ligação entre os versos da escritura na tentativa de demonstrar a complexidade das relações entre as afirmações bíblicas. Uma vez que um verso no NT fizesse uma referência ao AT, um arco foi colocado para demonstrar a conexão entre eles, e o resultado foi uma coleção de arcos em diferentes cores, linkando os versos das escrituras.
Nesse gráfico, as barras verticais na parte inferior do gráfico são referências aos versos das escrituras e o tamanho de cada uma das barras se deve ao tamanho do capítulo. Observe que em posição quase central pode-se encontrar o Salmo 119, o maior dos capítulos bíblicos.
Em 2009, usando a mesma idéia gráfica, Andy Marlon criou um gráfico no qual resolveu linkar aquilo que considerou ser as contradições encontradas nas escrituras. Usando o mesmo conceito dos capítulos apresentados na vertical na parte inferior do gráfico, ele criou um arco para cada uma das contradições que encontrou nas escrituras. Em anexo ao gráfico ele também incluiu as referências bíblicas organizadas em 439 temas.
Recentemente, uma passo a mais foi dado: Daniel G. Taylor transformou esse gráfico em um website user-friendly, no qual cada um dos arcos apresenta o tema e as referências bíblicas. Quando clicado, ele direciona o leitor para a Skeptics Annotated Bible (Bíblia anotada do Cético), no qual todos os versos são transcritos, o que facilita o estudo de cada uma das contradições apresentadas.
Além de um bom design, o que é inovador nesse site é que o leitor tem acesso rápido aos temas e aos versos da escritura. Nessa versão foram incluídos 463 temas no qual se organizou centenas de versos das escrituras, que estão em contradição, de acordo com os editores do projeto. De acordo com a própria página:
Muitas das contradições acima derivam de uma interpretação literal das histórias da Bíblia. Alguns versos podem ser erros de tradução, alegorias, exageros, etc e pode ser interpretada no contexto da sociedade em que foram escritos, reescrito ou modificado ao longo do tempo. Considerando-se que 46% dos americanos acreditam em uma interpretação literal do Gênesis (e provavelmente outras partes da Bíblia) e o fato de que muitas seitas discordam sobre quais partes se deve tomar literalmente, parece razoável incluir essas contradições com base na interpretação literal
Observe que mesmo os editores do material entendem que muitos dos versos podem ser resultado de erros de tradução, alegorias ou exageros. Honestamente eles aceitam o fato de que tal lista inclua contradições que de fato não são contraditórias. Outro detalhe interessante é que o princípio interpretativo básico é a literalidade. Não é necessário ser um especialista em hermenêutica para notar que o que eles chamam de literal não reflete o sentido que o termo inclui na interpretação bíblica.
Por exemplo, o tema 255 tem por definição: Qual era o verdadeiro nome de Jesus H. Cristo?. De acordo com a Bíblia Anotada do Cético (BAC) essa é uma contradição bíblica, pois em Ap.19.12 diz que ninguém sabe o seu nome, enquanto Mt.1.21 diz que é Emanuel. Para piorar tal contradição, os editores da BAC acrescentam outros títulos atribuídos a Cristo como Alfa e Ômega, o Leão da Tribo de Judá, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores. Se lidos literalmente esses texto não são uma contradição.
Caso similar acontece com o tema 3: Quantos filhos teve Abraão? Nesse caso os editores da BAC afirmam que é contraditório que Abraão tenha um filho unigênito de acordo com Hb.11.17, enquanto o relato de Gênesis afirma que teve outros (Gn.16.15; 25.1-2). Mais uma vez, se lidos literalmente esses textos não estão em contradição.
Mas, temos que admitir que dentre tantas contradições, nós realmente encontramos questões complicadas, como por exemplo o tema 349: A morte de Cristo foi um resgate por muitos ou todos? Essa é uma pergunta que tem dividido teólogos historicamente, embora qualquer uma das respostas oferecidas para tal dificuldade (isso mesmo, dificuldade não contradição) não coloca os textos em contradição, mas exige-se que sejam apenas melhor explicados em seus contextos.
Contudo, diferente do que muitos podem pensar, uma resposta adequada a esse tipo de ataque não se dá na resposta a todas as acusações de contradições feitas pelos editores da BAC, nem mesmo na apresentação de princípios hermenêuticos que poderiam corrigir as interpretações errôneas apresentadas na BAC. A melhor resposta se dá na definição adequada do que o Cristianismo é verdadeiramente.
Em primeiro lugar, o Cristianismo não é dependente da inerrância das escrituras.Muito antes da formulação teológica da inerrância contemporânea (cf. The Chicago Statement of Biblical Inerrancy, 1982), o Cristianismo já existia e era Cristianismo do mesmo modo. Nos primeiros momentos da era cristã existia uma doutrina insipiente da inspiração, mas não da inerrância. Quando os Pais da Igreja encontravam dificuldades nos textos das escrituras, não era incomum que eles o alegorizassem para extrair do mesmo o valor espiritual. Esse simples fato nos demonstra que desde os mais antigos momentos do cristianismo, os cristãos reconheciam dificuldades nas escrituras, mas isso não colocava sua fé em cheque. Muito pelo contrário, eles usavam essas dificuldades como uma oportunidade para melhor compreender o texto, como o próprio Agostinho salientou:
“Se estamos perplexos por causa de qualquer aparente contradição nas Escrituras, não nos é permitido dizer que o autor desse livro tenha errado; mas ou o manuscrito utilizado tinha falhas, ou a tradução está errada, ou nós não entendemos o que está escrito”
Em segundo lugar, o Cristianismo não é dependente do cânon das escrituras.Novamente, antes do cânon das escrituras (um debate não terminado ainda nos nossos dias), o cristianismo já existia e era Cristianismo.
Com isso não queremos dizer que essas doutrinas não são importantes para o Cristianismo, pois de fato o são. O que queremos dizer é que não são tão centrais quanto a mensagem de Cristo. Quando Paulo apresentou a Ceia Cristã (1Cor.11.23-27) ou o resumo da mensagem cristã (1Cor.15.1-4) ele o fez antes da produção dos evangelhos. O irmãos da igreja de Corinto receberam as ordenanças cristãs e a mensagem da salvação muito antes de receberem os evangelhos por escrito (se é que o receberam).
Observe que em 1Cor.11.23 Paulo fala que recebeu do Senhor (cf. Gl.1.11-12; 15-17) a tradição da última ceia de Cristo em uma forma muito similar àquela apresentada nos evangelhos (cf. Mt.26.26-28; Mc.14.22-24; Lc.22.17-20), antes que qualquer um dos evangelhos tivesse sido escrito. A verdade e autoridade da mensagem não residia na forma escrita da mesma, mas na própria mensagem. É por isso que o livro de Atos nos demonstra claramente que a centralidade da doutrina dos apóstolos estava ligada intimamente a mensagem de Cristo (cf. At.2.22ss; 36*; 42*; 3.14ss; 16-18*, 4.8ss; 11-12*, 29*; 33*, 5.20*; 30-32*; 40-42; etc).
Considere que em 1Cor.15.3-4 a expressão “segundo as escrituras” acontece três vezes. Paulo, bem como Pedro (cf. At.2.16-21; 25-28; 34-53), usaram o AT como referência para a mensagem do Messias, mas ambos estavam mais interessados em apresentar a Cristo, e a Cristo crucificado (1Cor.1.21-24) e ressurreto (1Cor.15.17-19) do que defender a inerrância das escrituras.
Com esse breve comentário, não nego a validade e importância da inerrância as escrituras, mas quero dizer que nossa prioridade para com um mundo perdido não é defender Biblicamente a Doutrina da Inerrância, mas apresentar a mensagem de Cristo. Nós podemos fazer um claro e convincente caso da Inerrância das Escrituras para os salvos, mas para com os não salvos, nossa missão é levar o evangelho.
A centralidade do Cristianismo não reside na Mensagem de Cristo + a Inerrância da Bíblia (embora defenda ambos os pontos). A verdade e validade do Cristianismo reside na mensagem de Cristo somente. Esse é o ponto central do Cristianismo. Observe por exemplo os credos mais antigos da Igreja, eles falavam mais sobre o Filho do que o Pai e o Espírito Santo, por que Cristo era o centro da validade do Cristianismo. Veja o Credo Apostólico por exemplo:
Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra.
E em Jesus Cristo, seu único Filho nosso Senhor. Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos Céus está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso, donde há de vir julgar os vivos e mortos.
Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna.
Ainda que não tenha sido escrito pelos apóstolos, esse documento demonstra que na Igreja Primitiva a centralidade da fé residia em Cristo. Nem o termo trindade é visto no documento, embora o conceito esteja claramente apresentado. O Centro era Cristo! (bem como os apóstolos nos ensinaram).
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