Paulo e a mulher
A Igreja tem espelhado os padrões da sociedade no que diz respeito à compreensão da mulher e de seu papel. Ainda encontramos locais onde tudo é fechado e proibido a ela, com base em geral num dogmatismo intolerante. No outro extremo, encontramos completa abertura quanto à posição e função da mulher no Corpo de Cristo, geralmente calcada em argumentos situacionais e pragmáticos.
Grandes denominações tradicionais (como Batista e Presbiteriana) e pentecostais históricas (Assembléia de Deus e Congregação Cristã) relutam em ceder à ordenação de mulheres ao pastorado. Tal linha de pensamento é normalmente denominada complementarista, sendo também aceitos os termos hierarquistas ou diferencialistas.[1]
Já outras denominações, embora também tradicionais (como Metodista e Luterana), vangloriam-se de ordenar mulheres ao ministério pastoral e presbiteral, seguindo os passos de carismáticos de vários matizes e horas (Evangelho Quadrangular, Renascer, Palavra da Fé). São os chamados igualitaristas, pois advogam plena igualdade.
O debate entre essas duas escolas de pensamento tem trazido mais calor que luz ao assunto. Os igualitaristas com freqüência recorrem a argumentos de cunho sócio-cultural, atribuindo à posição complementarista um conceito de superioridade masculina. Os complementaristas muitas vezes enfatizam as diferenças com base apenas na tradição ou nos costumes denominacionais, sem responder efetivamente ao desafio sócio-cultural que a questão apresenta para a Igreja contemporânea.
Embora a sensibilidade ao clima sócio-cultural de nossa época, área particularmente tão debatida na sociedade nas últimas décadas, seja uma virtude, é necessário buscar nas Escrituras a definição do papel honroso e importante concedido por Deus à mulher, de modo especial à mulher cristã.
Não se pode firmar posição sem algum trabalho histórico e exegético. Para isso, devemos empreender uma observação panorâmica da condição da mulher em diversas civilizações ao longo da história e examinar algumas passagens neotestamentárias, particularmente as paulinas. Paulo tem sido o bode expiatório numa espécie de diálogo de surdos sobre a posição e o papel da mulher. Ele precisa falar por si e por seu mundo, por assim dizer. Para isso, precisamos começar com um pouco de história.
A condição da mulher no oriente médio antigo
Nas culturas suméria e acádica, a mulher era considerada até certo ponto propriedade do marido. Os códigos legais, porém, continham leis específicas para proteger sua integridade física e sua subsistência.
As Leis de Ur-Nammu (2100 a.C.) exigiam reparação de uma mina de prata para a mulher divorciada, cinco siclos de prata pelo estupro de uma serva e um terço de mina de prata por falsa acusação de infidelidade por parte da esposa.[2]
O famoso Código de Hamurábi, escrito por volta de 1750 a.C., garantia à viúva de um nobre o direito de sustentar-se com os bens de seu marido;[3] garantia ainda a devolução do dote paterno e da quantia relativa ao preço da noiva à esposa que recebia carta de divórcio por não dar filhos ao marido. A legislação assegurava ainda o sustento da esposa doente, incapaz de desempenhar suas funções conjugais, mesmo depois de o marido ter-se casado de novo.[4]
O código legal hitita (cerca de 1200 a.C.) contemplava a possibilidade de a mulher iniciar o divórcio. Contudo, se a separação viesse a ocorrer, a preferência pela guarda (usufruto) dos filhos era do marido, pois a esposa tinha direito a apenas um dos filhos.[5]
As leis assírias do Império Antigo (cerca de 1100 a.C.) exigiam que a mulher abandonada esperasse por cinco anos o retorno do marido. Findo esse prazo, ela era considerada livre para contrair novo casamento, que não seria anulado ainda que o primeiro marido voltasse.
Em caso de divórcio, não era obrigatória a compensação financeira.[6] As mulheres de família eram obrigadas a usar véu ou xale em lugares públicos, ao passo que prostitutas eram proibidas de cobrir o rosto em público.[7]
Embora a legislação de outros povos do antigo Oriente Médio sobre esse tema não tenha sido literariamente preservada, é muito provável que seguissem as tendências descritas.
A condição da mulher na cultura grega
Entre os filósofos
No pensamento grego sobre a mulher, Platão foi um caso isolado. Afirmava a igualdade dos sexos. Via com naturalidade a participação da mulher em qualquer tipo de atividade social. Em sua obra A república, Platão defendeu idéias como a extinção do núcleo familiar e a entrega da prole ao Estado.[8] Dada a condição de total isolamento que a sociedade grega impunha às mulheres casadas e às que esperavam casar, não é de estranhar que as idéias de Platão jamais tenham “emplacado”. Ele estava adiante de seu tempo.
O pensamento de Aristóteles, discípulo de Platão, sobre os sexos era bem diferente. Afirmava que o homem representava o padrão, enquanto a mulher era inferior por natureza. Como outros pensadores gregos, Aristóteles via no amor homossexual o relacionamento ideal. Para ele, o amor heterossexual era mero instinto e impulso, com a única finalidade de procriação. Num certo sentido, também estava à frente de seu tempo.
Na sociedade em geral
Em Esparta, cidade militarmente orientada, as mulheres eram cuidadas apenas fisicamente para se tornarem “supermães”, gerando assim muitos filhos para benefício do estado. Por isso, sobejava a promiscuidade, enquanto o casamento era desvalorizado. O exibicionismo se constituía em prática comum entre as mulheres, e o divórcio era facilmente obtido.
Em Atenas, no entanto, o cuidado com a preservação dos laços sangüíneos era maior. Embora a família fosse um pouco mais valorizada, as mulheres enfrentavam alguns problemas:
Reclusão: as mulheres casadas eram totalmente confinadas ao gunaikonites, aposento da casa destinado ao serviço doméstico.
Isolamento intelectual: a mulher casada era limitada ao mundo doméstico. Embora houvesse alguma instrução formal em literatura, a esposa não participava ativamente da intensa vida intelectual grega.
Competição das hetairai: as hetairai eram uma espécie de garotas de programa altamente sofisticadas. Não pertenciam a famílias estabelecidas e por isso participavam livremente da vida social. Ofereciam prazeres físicos ocasionais, mas também estímulo intelectual. Não lhes era permitido casar com cidadãos atenienses.
Síntese da situação
Demóstenes, o grande orador do século iv a.C., afirmou: “Temos as hetairai para nosso prazer, concubinas para as exigências normais do corpo e esposas para gerarem nossos filhos legítimos e para serem guardiãs fiéis de nossos lares”.
Na Macedônia o quadro era um pouco melhor. Durante o século iii a.C., algumas mulheres capazes alcançaram posições de autoridade. Havia, no entanto, um profundo contraste entre essa elite e as massas. Ocasionalmente, as cortes concediam emancipação a mulheres da nobreza, mas a posição das mulheres comuns era tão inferior e sem esperança como as do resto do mundo grego.
Em Corinto, cidade moldada segundo os padrões romanos, havia muita licenciosidade devido ao culto a Afrodite e à presença de dois portos na cidade. Algumas das práticas contestadas por Paulo em 1Coríntios 11 e 14 podem ter advindo de mulheres cujo padrão de vida pré-conversão era menos rígido e que ainda não tinham conseguido corrigi-lo conforme as tradições apostólicas.
Éfeso era o centro de adoração de Ártemis, sede do maior templo da Antigüidade. Feministas (chamadas evangélicas) modernas têm se esforçado para maximizar o feminismo religioso, filosófico e político existente em Éfeso no primeiro século da era cristã.[9] Entretanto, S. M. Baugh demonstrou conclusivamente a natureza tendenciosa dos estudos que produziram tal opinião. Mostrou ainda evidência histórico-literária de que Éfeso acompanhava de perto o padrão “machista” da cultura grega, tanto no aspecto religioso, como no intelectual e secular. Evidenciou que o culto a Ártemis não era um culto de fertilidade, que promovesse a “superioridade feminina”.[10]
Em síntese, embora os gregos sejam muitas vezes apresentados como modelo de democracia e liberdade, o tratamento concedido às mulheres gregas revela quão inadequada é a natureza humana não-regenerada para valorizar de fato a mulher como indivíduo, e a esposa como essencialmente igual.
A condição da mulher na cultura romana
O período da república antiga
Durante os primeiros séculos da história romana, o pater familias exercia absoluta autoridade sobre a esposa e os filhos. Isso incluía o direito de divórcio, de determinar o casamento das filhas e até de promover o divórcio entre a filha e o genro. Tinha poder de vida e morte sobre a família.[11] Para a mulher, o casamento significava a simples transferência da autoridade do pai para a autoridade do marido. Detinha muito pouca expressão pessoal e poder, tanto no ambiente familiar, como político e econômico.
A república nova e o império
No século ii a.C. (fim das Guerras Púnicas), novas liberdades foram concedidas. As mulheres passaram a ter direito de herança, de realizar contratos legais e de iniciar o divórcio.[12] Apesar disso, ainda eram discriminadas. Em Tarso, cidade romana (apesar de localizada na Cilícia, atual Turquia), as mulheres eram obrigadas a andar inteiramente cobertas, com apenas os olhos descobertos. No final do primeiro século a.D., Dio Crisóstomo refere-se a esse costume como um remanescente de uma castidade que não mais existia. “Andam com os rostos cobertos, mas com a alma descoberta, escancarada”.[13]
Com a chegada do império, Augusto desejava aumentar a população romana por isso encorajou as mulheres a se emanciparem. A mulher livre que gerasse três filhos, ou a mulher liberta que gerasse quatro, ficaria livre do patria potestas do marido. Ao tempo de Adriano (século ii a.D.), a mulher podia tomar decisões financeiras e matrimoniais, incluindo divórcio, sem nenhum guardião masculino.
A mulher também possuía maior liberdade religiosa, embora a preferência fosse pela adoração aos deuses romanos. O grande número de nomes de mulheres em Romanos 16 pode demonstrar até que ponto essa limitação era respeitada.
Juvenal, um cronista satírico da época apostólica, criticou a maior liberdade que as mulheres romanas desfrutavam às custas das riquezas deixadas pelos maridos, mortos nas guerras de Roma.[14] No entanto, havia ainda uma linha conservadora de pensamento, expressa por Plutarco, historiador romano, que defendia a continuidade da autoridade do marido e da obediência cega da esposa.[15]
Vale a pena observar que tais progressos nem sempre satisfizeram a ânsia liberacionista das romanas, que por duas vezes na história tentaram um envenenamento em massa de seus maridos (331 e 180 a.C.).
As contradições resultantes dessa emancipação
É notável que as filosofias e as religiões no tempo do apóstolo Paulo pudessem promover a emancipação por motivos e meios tão diversos. O estoicismo, filosofia que destacava o dever e valorizava a moralidade, defendia a igualdade básica entre os sexos, a castidade pré-conjugal para ambos (o que já na época não era muito popular).
Entretanto, havia religiões, como o culto a Baco (Dionísio, na cultura grega), que enfatizava a igualdade do ponto de vista da libertinagem. As romanas “liberadas” entregavam-se a esse culto com freqüência. Conseqüentemente, a moral da família romana ao tempo de Paulo era pouco mais que a lembrança dos tempos da república velha.
Em 54 a.D., o filósofo estóico Sêneca indagou: “Haverá ainda alguma mulher que core ao pensar em divórcio, agora que certas senhoras nobres e ilustres contam seus anos de vida não pelo número de cônsules que viveram, mas pelo número de seus maridos, e saem de casa para se casar e casam-se apenas para se divorciarem?”.[16]
Em síntese, apesar das novas conquistas, a mulher romana ainda se debatia entre ser escrava dentro de casa e assumir um estilo de vida que conduzia à promiscuidade. Para ser moralmente firme, precisava resignar-se a ser “escrava”; caso se libertasse, não raro tornava-se objeto sexual.
A condição da mulher no judaísmo
O paradoxo entre a teoria (Pv 31) e a prática (sinagoga)
A mulher é extremamente elevada em Provérbios, mas sempre no contexto do casamento e do lar. Achar uma esposa é alcançar a benevolência do Senhor (18.22), e a mulher ideal reflete a sabedoria num estilo de vida que combina de maneira singular a liberdade e a vida doméstica (31.10-31).
Apesar de tais encômios, a visão do israelita médio estava mais próxima do pessimismo de Eclesiastes 7.28b: “… entre mil homens achei um como esperava, mas entre tantas mulheres não achei nem sequer uma”.
O livro apócrifo de Eclesiástico leva a misoginia a extremos ainda maiores, com uma constante nuvem de suspeita sobre o caráter moral do sexo feminino.[17]
No começo da era cristã, Filo de Alexandria, o filósofo que procurava integrar a fé judaica e a filosofia grega, produziu esta obra-prima do machismo: “… porque a esposa é uma criatura egoísta, excessivamente ciumenta e … capaz de subverter a moral de seu marido e de seduzi-lo por suas constantes imposturas”.[18]
Na sinagoga havia duas orações. A do homem dizia: “Bendito és tu, ó Senhor nosso Deus, Rei do universo, que não me fizeste um gentio, um samaritano, ou uma mulher”. A da mulher dizia: “Bendito és tu, ó Senhor nosso Deus, Rei do universo, que me fizeste segundo a tua vontade”.
O judaísmo farisaico depreciava a inteligência e a virtude da mulher, e a considerava mais inclinada ao pecado (por tê-lo introduzido) e à feitiçaria.[19]
Distinção entre as esferas de ação e a honra inerente à mulher
De acordo com o ideal do Antigo Testamento, a especial e suprema esfera de ação da mulher era o lar, onde possuía autoridade, canalizava boa parte da educação e exercia seus talentos de administradora. Negócios e atividades públicas jaziam fora da esfera doméstica. O judaísmo se desviou do Antigo Testamento ao assimilar de outras culturas o conceito universal da inferioridade intrínseca da mulher.
Maior liberdade de movimentos na sociedade
Embora o confinamento da mulher judaica não fosse tão absoluto quanto o das mulheres gregas, nem por isso ela podia considerar-se livre. A comunicação em público com os homens era claramente limitada, ainda mais se se tratasse de um rabi (cf. João 4). Não há consenso quanto ao traje, mas aparentemente o uso do véu em público não era obrigatório.
Maior valor pessoal e social
Algumas mulheres da história de Israel eram consideradas heroínas nacionais. Entre elas figuravam as Quatro Mães (Sara, Rebeca, Lia e Raquel) e quatro mulheres que tiveram papel importante na vida do povo: Noemi, Rute, Ana e Ester.
A personificação da Sabedoria em Provérbios não atribuída a um filósofo especulativo, mas a uma esposa e mãe, capaz de dirigir seu lar com competência e praticidade.
Inferioridade implicitamente aceita
Nascimento: o período de purificação era dobrado se o bebê fosse do sexo feminino. Pessoalmente, creio que havia razões teológicas (toda a questão do sangue e da “autoria” da vida) e talvez até fisiológicas (ainda não definidas ou descobertas pela ciência médica) para isso, mas a visão geral é que o motivo estava no fato de haver nascido alguém mais problemático ou inferior em pureza.
Educação: o ensino oferecido à mulher era simplificado. Os judeus (não o Antigo Testamento) consideravam a mulher incapaz de entender as minúcias dos ensinos rabínicos. Aparentemente os casos de Loide, Eunice e Priscila (Novo Testamento) eram diferentes, talvez pela oportunidade educacional um pouco maior entre os judeus da Dispersão.
Divórcio: embora a poligamia fosse permitida em Israel, o ideal a ser seguido era o da monogamia. O direito de requerer divórcio pertencia apenas aos homens. O máximo que uma esposa poderia esperar era receber a notificação do divórcio. Nesse ponto os judeus ficaram aquém dos pagãos antigos, que ao menos exigiam alguma compensação para a esposa divorciada.
Papel no lar
A mulher servia como consciência extra para o marido. Cabia à esposa israelita encorajar o marido em toda a santidade e dividir com ele a tarefa do treinamento religioso dos filhos. A fluência de Maria em seu cântico, o Magnificat, sugere que a mulher recebia razoável instrução da literatura religiosa israelita. Provérbios 31.26 sugere, ainda, que cabia à esposa e mãe a implementação das diretrizes morais do lar.
A mulher devia subordinar-se com dignidade e responsabilidade.[20] No todo, a mulher israelita desfrutava situação melhor que em outras culturas. Certamente, era mais resguardada contra a promiscuidade.
Papel na vida pública
Em Israel, vida pública era sinônimo de vida religiosa. A mulher participava da vida religiosa e, ainda que não exercesse liderança, não se constituía em simples espectadora. Alguns dos atos públicos de adoração envolviam a participação dela. Entretanto, se a liderança fosse feminina, o grupo liderado compunha-se exclusivamente de mulheres.
Deuteronômio 12.12, 18; 14.26 e Números 6.2 comprovam que a mulher também participava da aliança entre Yahweh e Israel. Ocasionalmente o ministério profético feminino era exercido em épocas em que profetas respeitados e conhecidos atuavam. É o caso da profetisa Hulda, mencionada em 2Crônicas 34.22, 23, época do ministério de Jeremias.
Os israelitas tinham por heroínas mulheres que realizaram feitos valorosos, como Jael (Juízes 4) e Débora (Juízes 4, 5). Nos livros apócrifos, Judite é descrita como mulher de fé e coragem; a mãe dos sete mártires é louvada em 2Macabeus 7 por sua fidelidade à Lei e aos costumes judaicos.
Algumas mulheres também exerceram, ainda que brevemente, o ministério de ensino. O Antigo Testamento registra Miriã (Êx 15.20), Hulda, a profetisa consultada por Josias (2Rs 22.14), e Noadia, a falsa profetisa (Ne 6.14). Ana, no Novo Testamento, parece ter sido uma dessas profetisas-conselheiras.
Judicialmente a mulher tinha poucos direitos, pois só podia herdar terras se não houvesse filhos do sexo masculino. A parábola do juiz iníquo, em Lucas 16, sugere ainda que havia discriminação no exercício da justiça.
Em síntese, a visão oficial, e aparentemente contraditória, do judaísmo pode ser ratificada num comentário rabínico acrescentado ao salmo 45.13: “A filha do Rei é toda gloriosa dentro do palácio, mas não fora dele”.
Uma teologia bíblica da mulher
No Antigo Testamento
Depois de uma visão rápida e geral da posição da mulher em diferentes culturas, é necessário voltarmos a atenção ao Antigo Testamento. Aqui se encontram os fundamentos para a correta compreensão do papel da mulher na Igreja.
A posição adotada quanto ao propósito divino para a mulher e ao valor que ela possuía na revelação dada a Moisés determinará, em grande medida, a perspectiva do intérprete das controvertidas passagens sobre a mulher no Novo Testamento.
O texto de Gênesis 1.26-28 ensina, entre outras coisas, que o conceito de Homem engloba a ideéa de homem e mulher. A gramática do texto hebraico é surpreendente:
A alternância entre o sufixo pronominal objetivo direto singular e plural é quase tão intrigante quanto o uso do verbo no singular (criou) para um substantivo plural (Elohim). Ainda que estruturalmente distintos (homem e mulher), ambos eram Homem. Na verdade, a soma de ambos era Homem. A humanidade dependia de serem homem e mulher.
A mulher participava com o homem na constituição da imago Dei. Embora o significado da expressão imagem de Deus continue a ser debatida, certamente inclui a capacidade de relacionamento entre as três pessoas da Trindade. O reflexo de Deus no Homem precisava demonstrar essa categoria fundamental da natureza divina, daí a necessidade de um relacionamento pessoal íntimo, como o que seria mais tarde definido como “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2.23).
A mulher participava com o homem na tarefa de sujeitar a terra. Novamente a gramática hebraica alterna pronomes singulares (“Domine ele sobre …” [Gn 1.26]) e pronomes plurais (“Dominem [eles] sobre os peixes do mar…” [Gn 1.28]). O domínio sobre a criação é elemento importante na imagem de Deus.
O homem foi estabelecido como regente de Deus, o primeiro exemplo de terceirização na história. Homem e mulher eram essenciais para essa tarefa, embora Gênesis não discrimine a parte que cabia a cada um deles. Naturalmente a sujeição da terra dependia de haver pessoas espalhadas por ela, e aí os papéis eram claramente definidos e a interdependência dos sexos, óbvia (argumento que defensores de estilos “alternativos” de relacionamento insistem, cegamente, em ignorar).
A narrativa mais relacional da criação do homem, em Gênesis 2.18-25, ilumina a complementação apenas sugerida em Gênesis 1. A mulher foi criada como “auxílio” para o homem. As traduções portuguesas não contribuem para uma percepção equilibrada dessa frase. Termos como “adjutora” e “auxiliadora” obscurecem o sentido do texto e sugerem uma subordinação essencial, que o texto original não indica.
Na verdade, o termo hebraico aqui usado (ezer) é um dos epítetos mais comuns para o próprio Yahweh, o Deus de Israel (cf. salmo 33.20).[21] Logo, a passagem naturalmente valoriza a mulher, em lugar de desmerecê-la. Ela é apresentada numa posição privilegiada, como agente de Deus na vida do homem.
A mulher foi criada para corresponder ao homem em seus aspectos fisiológico e psicológico. A expressão hebraica kenegdow (literalmente “como que diante dele”) enfatiza essa correspondência, que por sua vez é inserida, quanto à origem, num contexto de dependência (Eva foi tirada do lado de Adão). Tal conceito encontra equilíbrio no ensino de Paulo sobre a interdependência entre os sexos (1Co 11.11,12).
Esta passagem também contribui para entendermos a origem do conceito de autoridade no relacionamento homem-mulher. O fato de Adão ter designado o nome “genérico” de sua companheira já indica, a partir da criação, a idéia de hierarquia, fundamentada não em caráter valorativo, mas funcional, segundo o que Deus atribuiu a cada um dos cônjuges. A subordinação da mulher, portanto, não se iniciou com a Queda. Nesse momento, o que surgiu foi a competição pela autoridade, com a conseqüente desarmonia.
O nome dado à mulher, ishá, é uma paronomásia muito criativa, pois auditivamente sugere a idéia de derivação do homem (Heb., ish), e lexicamente aponta para a maior delicadeza estrutural da mulher, já que em termos léxicos a palavra é derivada da raiz hebraica anash, que indica fraqueza, fragilidade. Não seria de admirar se esta passagem estivesse na mente de Pedro ao escrever o texto de 1Pedro 3.7.
Vejamos outras passagens do Antigo Testamento que indicam tanto zelo quanto valorização da mulher.
Êxodo 21.7-11: indica que a mulher, mesmo na condição de escrava, tinha direitos inalienáveis que deveriam ser respeitados, caso contrário a Lei assegurava sua liberdade.[22]
Êxodo 22.22: aponta para a atenção que, idealmente, Israel deveria dispensar aos desvalidos da sociedade, viúvas e seus filhos. A profundidade dessa instrução se reflete em Tiago 1.27.
Deuteronômio 21.10-17: refere-se à proteção oferecida até mesmo à mulher cativa de guerra. Seus sentimentos deviam ser respeitados, assim como sua expressão de luto e sua individualidade. Ainda que derrotada na guerra, a dignidade humana proibia ao israelita cometer abusos de violência física e emocional a que outras nações submetiam seus cativos.
Deuteronômio 22.22-29: indica que a legislação israelita dava sempre o benefício da dúvida à mulher em situações que envolviam sexo ilícito. Este é o caso da “noiva”; sexo pré-conjugal podia acarretar o pagamento de uma compensação ao pai da noiva e um casamento sem possibilidade de divórcio (v. 28, 29) ou o simples pagamento de compensação dobrada, caso o pai julgasse inconveniente a união conjugal (v. Êx 22.16, 17).
Provérbios 5, 7: se essa passagem não for analisada e compreendida no contexto do movimento de sabedoria em Israel, pode apresentar uma visão erroneamente machista. A mulher ardilosa e adúltera aqui mencionada não tipifica a mulher em geral. Trata-se da corporificação da vida avessa a Deus, infiel ao padrão divino de vida significativa na comunidade da aliança. Embora seja um personagem real, não corresponde a um retrato 3×4 de todas as mulheres. No entanto, expõe o tremendo potencial da sexualidade feminina, que pode efetivamente dinamizar a vida do homem (cf. Pv 5.18, 19) ou destruí-la completamente (Pv 7.22-27).
Provérbios 31: também não pretende estereotipar a mulher. Seria injusto exigir aquele padrão de desempenho social de uma jovem mãe de três crianças na primeira infância. O que o texto retrata é a corporificação da sabedoria por meio da imagem da mulher madura, cujos filhos já são ouvidos na comunidade. A mulher que já exerceu seu tremendo papel de engenheira doméstica, facilitadora educacional, administradora e gerente de pessoal, consultora financeira, assistente social voluntária e motivadora do bem, e agora aumenta o patrimônio da família com sua criatividade e tino comercial. Não tenho dúvida de que algumas das prescrições de Paulo nas epístolas pastorais foram influenciadas pela eshet hail (“mulher de valor”) de Provérbios 31.
No Novo Testamento
A influência de Jesus
Os séculos que separam o fechamento do cânon do Antigo Testamento da abertura da história neotestamentária trouxeram a deterioração do relacionamento proposto por Deus para o homem e a mulher. Embora o último livro do cânon (ocidental) denuncie a facilitação do divórcio e a deslealdade machista contra as mulheres israelitas, ao tempo de Jesus os rabis justificavam o divórcio por trivialidades e simples razões estéticas.[23]
Não é propósito deste ensaio discutir o complexo tema do trato de Jesus com as mulheres. Algumas das indicações quase corriqueiras dos evangelhos sugerem que as condições de vida das mulheres de Israel no primeiro século da era cristã não eram tão adversas quanto faz supor a literatura feminista evangélica em sua ânsia por saudar Jesus como libertador.[24]
Embora Jesus não tenha alterado o aspecto doutrinário nem teológico da posição da mulher, não há como negar que ele alterou radicalmente o aspecto prático. A liberdade que Jesus concedia às mulheres e a misericórdia com que as tratava introduziu um conceito revolucionário de valorização da mulher.
Para o Mestre, homens e mulheres tinham os mesmos privilégios, embora preservasse claramente as diferenças implícitas em Gênesis e latentes na Lei quanto às esferas de atividade de cada sexo.
No aspecto geral, Jesus elevou a posição social da mulher ao restaurar o conceito original da indissolubilidade do casamento e ao receber mulheres entre os discípulos e ensiná-las diretamente. Jesus valorizou a capacidade intelectual e espiritual da mulher, sua capacidade de serviço e de empatia com os carentes.[25]
A influência de Paulo
O apóstolo Paulo tem sido chamado de misógino e filógino, acusado de machista e feminista, conforme a ênfase de seus comentaristas recaia sobre as passagens restritivas (1Co 14 e 1Tm 2) e subordinacionistas (Ef 5.22) ou sobre as liberativas (1Co 11 e Gl 3.28).
A proposta desta parte do ensaio é indicar áreas em que complementaristas precisam responder exegeticamente aos argumentos dos igualitaristas. Destacarei, para tanto, pontos específicos em que estes últimos laboram em erro e as linhas básicas das respostas necessárias quando se discutem a posição e a função da mulher no lar, na Igreja e na sociedade.
O texto de 1Coríntios 7, tão debatido quando o tema é divórcio, traz importantes ensinamentos para compor uma teologia bíblica da mulher:
- O casamento não é intrinsecamente mau, e por isso não precisa ser evitado (v. 1, 2). Paulo queria corrigir o “efeito pendular” em Corinto. Alguns, por terem apresentado uma vida sexualmente desregrada antes da conversão, pensavam agora compensar adotando uma atitude de completa abstinência. Outros, talvez influenciados por um gnosticismo ascético incipiente, pregavam completa abstinência dentro do casamento. Tais idéias eram geralmente acompanhadas da depreciação da mulher, particularmente da sexualidade feminina, encarada incompatível com a espiritualidade cristã.
O tom de concessão que Paulo usa nestes dois versículos não deve ser entendido como depreciação do casamento, especialmente pelo fato de não dispormos da pergunta que originou a resposta. Alguns estudiosos pensam estar relacionado com pessoas (e casais) que desejavam dedicar-se ao ministério, o que conferiria outro tom às palavras de Paulo.
- Há uma igualdade intrínseca no relacionamento matrimonial, tanto em direitos quanto em posse mútua (vv. 3-5). É notável que Paulo inicie sua exortação pelos maridos, exigindo deles que supram as esposas do que elas têm direito no contexto do relacionamento físico no casamento. Numa sociedade greco-romana na qual a mulher era dominada pelo marido ou se tornava libertina, a exigência inicial aos maridos era sobremodo notável.
- Não há nenhuma concessão a relações extraconjugais (v. 9). Paulo revela mais uma vez que a ética conjugal cristã (e, por inferência, a visão cristã da mulher) estava muito acima do praticado (ou na melhor das hipóteses tolerado) por gregos e romanos.
- A indissolubilidade do casamento é um ideal a preservar (vv. 10-16). Para evitar uma caixa de Pandora teológica, basta enunciar aqui algumas propostas: separação implica celibato ou reconciliação; casamentos “mistos” (i.e., em que apenas um dos cônjuges se convertera ao cristianismo) não oferecem motivo para o crente buscar o divórcio; a insistência do cônjuge descrente liberta o cônjuge crente de viver com ele(a), mas não para recasar (interpretando de maneira mais aberta o termo chorizestai, e de maneira mais fechada o termo dedoulotai, em 1Co 7.15).
- O celibato traz certas vantagens (vv. 26-40). Uma vez mais, esta parte do capítulo parece sugerir que as preocupações dos coríntios estavam relacionadas ao ministério. Nesse contexto, o celibato oferece as seguintes vantagens sobre o casamento: (a) maior entrega ao serviço; (b) menos pressões em dificuldades; e (c) melhor proveito do pouco tempo.
O texto de 1Coríntios 11 é também bastante controvertido. É preciso reconhecer que Paulo invoca a tradição apostólica, uma esfera de atuação que não se limita ao transitório, acessório e cultural, mas ao permanente, essencial e teológico (cf. o uso do substantivo paradosis e do verbo paradidomi em 1Co 11.23, quanto à Ceia, em 1Co 15.3, com referência ao evangelho, e 2Ts 2.15, sobre a segunda vinda). Se não nos ativermos a esse fato, ficaremos à mercê das opiniões individuais quanto ao que Paulo apresenta nesta passagem. Em linhas gerais, podemos observar que:
- O caráter excepcional da passagem exige uma comparação honesta com 1Coríntios 14 e 1Timóteo 2, sem rebaixar qualquer delas ao nível de sub-inspiração e sem recorrer a definições seletivas de termos.
- O fato de Paulo ocasionalmente se valer de uma pedagogia que aceita por algum tempo posições erradas para futura correção não é cabível no caso de 1Coríntios 11 e 14, devido à grande distância entre os dois contextos.
- O que a passagem considera não é o valor relativo do homem e da mulher, mas a hierarquia funcional estabelecida na Criação, confirmada na missão messiânica de Jesus (v. 3), e que deve ser continuada na assembléia cristã. Os argumentos de Paulo para o uso do véu não são culturais, mas são argumentos teológicos que procedem da revelação especial (aqui o relato da criação em Gênesis 1) e da revelação geral (o que Paulo diz ser percebido na própria natureza, v. 14). Assim, creio que o ônus de prova recai sobre quem tenta justificar a ausência do véu em nossos dias em termos meramente culturais.
- A questão por trás dos argumentos era a postura arrogante, independente e insubmissa de algumas mulheres no culto público. Paulo permite o uso do dom mediante o uso do véu, símbolo que expressa submissão interior à corrente de comando estabelecida por Deus.[26]
No texto de 1Coríntios 14.33, 34, a ênfase recai sobre costumes estabelecidos em todas as igrejas dos santos, certamente determinados por seus fundadores apostólicos. Se o padrão refletia o da sinagoga, isto não é demérito da Igreja, e sim mérito para a sinagoga.
- A exigência para que as mulheres fiquem em silêncio (oigao). Tendo em vista a permissão do capítulo 11, o verbo lalein deve significar algo mais que, ou diferente de, orar ou profetizar. Parece-me que tanto o modelo de pregação adotado por Paulo, descrito pelo verbo dialegomai (cf. At 20.7), quanto a sugestão de que os profetas fossem avaliados pelos irmãos estavam sendo mal usados em Corinto. Lá, durante o culto, as mulheres argüiam indiscriminada e ostensivamente os profetas (cf. v. 35 e 1Tm 2.11,12). Segundo Paulo, ao exibir sua “independência”, a mulher cometia ato vergonhoso (aischron), depreciando o valor intrínseco de sua feminilidade. Elas próprias acabavam por diminuir seu valor extrínseco.
Como interpretar o texto de 1Timóteo 2.9-15
- O recato no vestir é condição sine qua non para o ministério da mulher crente (cf. o uso do advérbio osautos, que aponta para uma identidade de conceitos entre este parágrafo e o anterior). O verdadeiro adorno de uma mulher ou jovem solteira é sua atitude de serviço e obediência.
- O uso da palavra katastole sugere que algumas mulheres em Éfeso adotavam padrões comuns às mulheres romanas, mais “liberadas”. Talvez até se tratasse de padrões adotados pelas famosas hetairai, os quais estavam sendo introduzidos na igreja por meio da sensualidade e da independência acintosa daquelas mulheres. A ênfase da passagem está no bom gosto e no bom senso (kosmos).
- O que Paulo exige das mulheres neste texto difere do apresentado em 1Coríntios 14. Aqui ele não exige silêncio, mas tranquilidade, mansidão ou quietude (hesuchia, v. 11). O discutido verbo authentein não pode ser usado como justificativa para afirmar que o que Paulo proíbe é apenas o ensino autoritário, dominador das mulheres. A idéia real do verbo é exercer autoridade de qualquer tipo.[27]
- Nos versículos 13 e 14, o silêncio pedagógico imposto à mulher se deve à prioridade na criação e à falta de fidedignidade histórica da mulher como guia espiritual. À luz dessas considerações, o versículo 15 não se refere à salvação no sentido soteriológico eterno. A mulher será libertada desse incômodo status causado pela ação de Eva no Éden ao demonstrar ser um guia espiritual digno de confiança dentro dos limites prioritariamente domésticos que lhe foram estabelecidos por Deus. Gerar filhos e educá-los de modo que eles permaneçam no caminho do Senhor qualificaria publicamente uma mulher como “mestra do bem” (cf. Tt 2.3).[28]
Há três interpretações possíveis para o termo grego gunaikas em 1Timóteo 3.11:
1- Alguns afirmam que o termo se refere a esposas de diáconos sob as seguintes alegações:
- gune é o termo normal para “esposa” no Novo Testamento;
- as mulheres de que fala a passagem estão diretamente relacionadas aos diáconos;
- o tipo de ministério diaconal permite sua menção, em contraste com os presbíteros, cujas esposas não poderiam partilhar seu ministério.
2- Outros preferem ver aqui uma referência às diaconisas, sob as seguintes alegações:
- a conjunção wJsauvtw~ indica uma terceira classe de obreiros;
- Febe foi chamada de “diaconisa” em Romanos 16.1;
- a palavra gunhv é um termo geral para “mulher”; não se limitava a esposas;
- documentos do século iii indicam que a função de diaconisa foi instituída, eventualmente, pelas igrejas cristãs, talvez por volta do século ii.[29]
3- Uma terceira opinião é que o texto se refere a assistentes não-casadas (viúvas ou virgens) dos diáconos. Vejamos as argumentações:
- a relação descrita é de trabalho, não de casamento, pois logo depois é mencionado o status conjugal exigido dos diáconos;
- a ausência de pronomes possessivos sugere que as “mulheres” não estavam relacionadas aos diáconos;
- não há qualificações familiares, supostamente necessárias para o caso de Paulo introduzir um terceiro nível de ministério;
- o mais lógico, no caso de Paulo especificar outro nível de ministério, seria antes finalizar os requisitos para o diaconato masculino;
- historiadores sugerem que apenas solteiras e viúvas eram “diaconisas”.
A meu ver, o que começou como um ministério destinado a viúvas foi depois estendido às virgens, e em tempos modernos englobou mulheres casadas. Historicamente essas “mulheres” serviam aos desvalidos pela sorte, aos enfermos, ajudavam na preparação das mulheres para o batismo cristão e no discipulado de mulheres em famílias pagãs, onde a presença de homens seria vista com grande suspeita.[30] Pessoalmente, não vejo problema no uso do termo diaconisa, mas prefiro a terceira alternativa.
O texto de Gálatas 3.28 é fundamental para o movimento feminista “evangélico”, para os que defendem um ponto de vista igualitário no ministério. O argumento é que a redenção em Cristo aboliu todas as barreiras e distinções causadas pela Queda. Infelizmente, complementaristas desavisados têm respondido a esse argumento de maneira às vezes agressiva e às vezes simplista. O que os complementaristas precisam fazer para responder adequadamente a tais propostas teológico-sociológicas?
Indicar os problemas da abordagem feminista:
- em primeiro lugar, é preciso levar em igual conta as passagens que ensinam alguma medida de subordinação. Infelizmente, as “feministas”, como Mickelsen, Scanzoni, Schroeder entre outras, sugerem que Paulo se contradiz ou que as passagens subordinacionistas não são de Paulo, o que revela o problema teológico de uma sub-inspiração para partes do cânon;
- em segundo lugar, é preciso entender que o verbo usado por Paulo quando se refere a mulheres e maridos (hupotasso) indica realmente subordinação, e não simples “ordem”, como exige o feminismo, o que revela um problema de exegese tendenciosa, ou eisegese;
- em terceiro lugar, é preciso destacar que em nenhuma das passagens relacionadas à subordinação Paulo usa argumentos de natureza cultural. Todos são teológicos e todos se baseiam na ordem e hierarquia da Criação, não da Queda.
Indicar os conflitos sociais que tal abordagem traria: exigência de extinguir níveis sociais e de instaurar a anarquia civil.
Indicar uma alternativa bíblica:
- a igualdade ontológica (expressa nos termos usados, “macho” e “fêmea”, e não “homem” e “mulher”) não elimina a hierarquia social-funcional (para a qual há um paralelo na própria doutrina da Trindade);
- o que a Queda nos tirou não foi a igualdade absoluta entre homem e mulher, mas a harmonia na hierarquia que Deus instituíra na criação. As palavras de Deus a Eva em Gênesis 3.16 sugerem que o desejo da mulher seria “contra” o marido, e não “para” (cf. Gn 4.7; verificar a tradução da nvi e a nota de rodapé para esta passagem). O que Cristo restaurou foi a ausência de competição no relacionamento, quer em termos de casal, quer em termos de comunidade.
Vejamos, ainda, a título de conclusão algumas passagens ocasionais. Em Romanos 16 e em Filipenses 4, Paulo menciona mulheres que trabalharam a seu lado em prol da causa cristã. Febe é o ícone especial das feministas, por ser supostamente chamada de “diaconisa”. No entanto, o texto de Romanos 16.1 diz apenas que ela uma serva na igreja em Cencréia. [31]
Júnias, que é chamada de notável entre os apóstolos (Rm 16.7), poderia na verdade ser o Junias, dada a natureza ambígua dos nomes latinos terminados em -as. Mesmo que se trate de mulher, a expressão não descreve necessariamente um membro da companhia apostólica, mas apenas pessoas importantes aos olhos dos apóstolos.[32]
As demais mulheres claramente ocupam lugar de destaque, mas não recebem nenhuma indicação de posição pastoral ou presbiteral. Somente as lentes exegéticas das feministas determinam o que elas encontram em tais passagens.
Em Filipenses 4, Evódia e Síntique trabalharam com Paulo e são, por isso, dignas de atenção e deferência não só por parte do apóstolo, mas de seu “companheiro de jugo”. Este provavelmente ministrava em Filipos numa posição em que poderia, ao mesmo tempo, corrigir e encorajar as duas irmãs.
Conclusão
O Novo Testamento indica que a mulher desfruta dos mesmos privilégios espirituais que o homem, mas com responsabilidades diferentes. A mulher deve submissão ao homem em duas esferas específicas: paternal e matrimonial. Essa submissão deve refletir-se em sua principal esfera de atividade: o lar, onde ela pode e deve buscar sua maior realização.
A solteira desfruta de maior liberdade, mas é igualmente responsável por demonstrar uma atitude de submissão. O texto de 1Timóteo 2.10 exorta as solteiras a se dedicarem ao ministério assistencial.
O ministério da mulher como mestra na igreja é extremamente importante. Gerações de crentes têm desperdiçado seu potencial de discipulado e preparação de novas mestras do bem. Nossas igrejas locais têm sido prejudicadas por tal negligência, que considera inferior a quem Deus concede honra.
Seminários muitas vezes têm contribuído para acentuar essa negligência, priorizando o acadêmico em detrimento do pessoal, do cultivo de um espírito manso e tranqüilo (por favor, não releiam Pedro para entender “vaquinhas de presépio”), e de um anseio por valorizar o discipulado e o aprendizado, a mentoria de outras mulheres mais jovens.
Maridos crentes têm incentivado essa revolta latente contra os princípios bíblicos por fugirem de assumir sua responsabilidade de liderança da igreja local, lançando-a sobre os ombros de suas esposas e de mulheres solteiras. Quão melhor fazer da parceria marido-esposa, noivo-noiva, namorado-namorada o modelo para a educação cristã em nossas igrejas.
O verdadeiro complementarismo, embasado numa teologia bíblica da mulher, oferece à igreja do século xxi um desafio que, se aceito em fé esclarecida pela exegese (não pela cultura), dinamizará relacionamentos e mudará a face de nossas comunidades.
Bibliografia
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Artigos
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[1] Ver Augustus Nicodemus Lopes, Ordenação feminina: o que o Novo Testamento tem a dizer?, p. 59.
[2] J. B. Pritchard, Ancient near eastern texts, p. 524.
[3] , p. 171 (lei 133).
[4] Ibid., p. 172 (leis 138 e 148).
[5] Ibid., p. 190 (leis 26 e 31).
[6] Ibid., p. 183 (leis 36 e 37).
[7] Ibid., p. 183 (lei 40). Comparar com Gênesis 38, quando Tamar se disfarça de prostituta, encobrindo assim o rosto.
[8] VII:540.
[9] R. C. Kroeger e Catherine C. Kroeger, I suffer not a woman: rethinking 1Timothy 2.11-15 in light of ancient evidence, pp 93, 196. , e Alvera Mickelsen, “Um ponto de vista igualitário: não há homem nem mulher em Cristo”, em Mulheres no ministério, pp. 243-244.
[10] “A foreign world: Ephesus in the first century”, em Women in the church: a fresh analysis of 1Timothy 2.9-15, pp. 13-52.
[11] Jerome Carcopino, Daily life in ancient Rome, p. 77.
[12] Wayne House, The role of women in ministry today, p. 62.
[13] Tarsica prior Orat., 33.403m.
[14] Sátiras, p. 6.
[15] Conselhos à noiva e ao noivo.
[16] De Beneficiis 3.16.2.
[17]“Qualquer ferida, menos a do coração; qualquer malícia, menos a da mulher […] Pouca maldade é comparada com a da mulher; cai sobre ela a sorte dos pecadores […] Se ela não obedece ao dedo e ao olho, separa-te dela […] A libertinagem da mulher é vista na excitação dos olhos, é conhecida nos seus olhares. Reforça a tua vigilância em torno da filha audaciosa, a fim de que, achando-se mal vigiada, ela não se aproveite disso” (Eclesiástico 25.17, 19, 26; 26.9-10, Bíblia de Jerusalém, 1281-2).
[18] Hipothetica, 11.14.
[19] Joseph Bonsirven, Palestinian judaism in the time of Jesus Christ, p. 100.
[20] Charles C. Ryrie, The place of women in the church, p. 11.
[21]Das 21 ocorrências dessa palavra no Antigo Testamento, 17 se referem claramente a Yahweh, duas claramente à mulher, uma possivelmente a Yahweh (Dn 11.34) e uma à ajuda humana.
[22] Nossa mentalidade ocidental pode estranhar a naturalidade com que Moisés se refere à venda de uma filha como escrava. É preciso lembrar que o sistema escravagista em Israel era radicalmente distinto da barbárie da escravidão praticada pelos “cristãos” ocidentais a partir do século xvi. O ano da remissão e o direito a juízo em busca dos direitos assegurados na Lei são apenas uma mostra dessa diferença.
[23] A escola do rabi Hillel permitia o divórcio por razões frívolas como uma refeição mal preparada ou simplesmente porque o marido encontrara outra que lhe agradava mais, e tudo com base em Deuteronômio 24.1-4. Jesus fechou definitivamente a porta a essa atitude depreciativa para com a esposa.
[24] Lucas 8.1-2 indica que mulheres participavam do sustento do ministério de Jesus com “seus bens”, o que pode indicar acesso ao dote matrimonial ou a outros recursos da família.
[25] Ler Carlos Osvaldo Pinto, “O papel da mulher no evangelho de João”, Vox Scripturae iii:2, pp. 193-213, onde os exemplos do quarto evangelho retratam privilégios concedidos e retidos por Jesus.
[26] A preocupação de Paulo era a manutenção da ordem hierárquica expressa na criação. O véu simbolizava que a mulher aceitava essa hierarquia, que é funcional, não essencial.
[27] Cf. H. Scott Baldwin, “A difficult word: aujqentevw in 1Timothy 2:12”, em Women in the church, p. 65-80, onde um estudo abrangente do termo demonstra a falácia dos argumentos feministas sobre esta palavra.
[28] A mudança de um verbo no singular (swqhvsetai) para o plural (meivnwsin) não garante forçosamente a interpretação aqui proposta, mas a torna bastante atraente.
[29] H. Wayne House, The role of women, pp. 96-99.
[30] Ibid., p. 98.
[31] Alvera Mickelsen, “Um Ponto de Vista Igualitário”, pp. 231-232, procura explorar a idéia de que Febe era uma líder com base na palavra grega prostatis. Ignora, deliberadamente, o léxico padrão (Bauer-Arndt-Gingrich[-Danker], p. 726) onde a indicação a Romanos 16.1 dá ao termo a idéia de patronesse, patrocinadora, equivalente ao termo moderno “mecenas”. Essa idéia estava presente no masculino prostates, tanto na literatura judaica quanto em obras pagãs. Febe daria, assim, seqüência ao ministério de assistência realizado por mulheres como Joana e Maria Madalena (Lc 8.1-2) para com Jesus e os discípulos, e realizado por Lídia para com o grupo apostólico (At 16).
[32] Cf. mais uma vez o artigo de Augustus Nicodemus Lopes, citado acima, em que a questão do nome Júnias é tratada com equilíbrio, não com paixão.
Fonte: REGA, Lourenço Stelo (Org). Paulo e sua Teologia. Editora Vida. 2009.
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