Por Charles C. Ryrie
A discussão sobre o fim da Lei Mosaica, e suas ramificações envolvidas, é algo que geralmente termina em confusão. Todos os intérpretes das Escrituras são encarados com o claro ensino de que a morte de Cristo trouxe um fim para a Lei Mosaica (Rm 10:4), enquanto ao mesmo tempo reconhecem que alguns dos mandamentos da Lei são renovados, de maneira clara e sem mudanças, nas epístolas do Novo Testamento. Ou então o problema é declarado na forma de uma pergunta, que é esta: Como a Lei pode ter terminado se porções dela são repetidas depois que supostamente terminaram?
O conceito da Lei
A Lei que está em discussão nessa pergunta é a Lei Mosaica. Embora a palavra “torah” tenha sido usada de maneira bastante ampla no Judaísmo, ela se refere especialmente ao código que foi dado no Sinai. As vidas dos excelentes rabinos eram chamadas, às vezes, de “torah”. O conjunto do Velho Testamento também foi assim designado, mas particularmente o Pentateuco era a Torah. A superioridade do Pentateuco estava ligada diretamente à grandeza de Moisés (Nm 12:6-8; Dt 34:10), embora os rabinos tenham sido cuidadosos ao salientar que qualquer diferença estava apenas em questão de detalhe e não de princípio.
A lei era geralmente dividida em três partes – a moral, a cerimonial e a judicial. A parte moral era denominada “as palavras da aliança, as dez palavras” (Êx 34:28) – a partir do qual derivamos o equivalente grego decálogo. Os julgamentos começam em Êxodo 21:2 e determinam os direitos entre homem e homem, com julgamentos de atendimento aos ofensores. A parte cerimonial, que tem início em Êxodo 25:1, regulava a vida de adoração de Israel.
Embora esta tripla divisão da lei é popularmente bem aceita na Teologia Cristã, os judeus têm duas visões: ou não reconhecem ou não insistem nisso. Eles primeiramente enumeram todos os preceitos particulares; e então os dividem em famílias de mandamentos. Por este método, eles contam um total de 613 leis e doze famílias de mandamentos.
“As letras numerais da torah denotam seiscentos e onze deles; e os outros dois, como eles dizem, são as primeiras palavras do Decálogo, que foram entregues pelo próprio Deus para o povo, por isso, não entram no compasso da palavra Torah naquele lugar: de onde eles tiram esta importante consideração, a saber, Dt 33:4, ‘Moisés nos deu a lei’, que é de seiscentos e onze preceitos; acrescentando mais dois, sendo dados pelo próprio Deus, completando, assim, o número de seiscentos e treze”.
Estas 613 leis individuais foram divididas, também, em mandamentos positivos e negativos, e foi dito que eram 365 negativos e 248 positivos. Isso significava que existia um mandamento para cada dia do ano, com vista a guardar o homem da tentação, e um mandamento para cada membro do corpo humano, para lembrá-lo de obedecer a Deus com todo o seu ser.
Comentando sobre isso, Schechter tenta minimizar a contagem numeral atual, a fim de viciar o uso cristão deste largo número para enfatizar o fardo da lei. Ele diz que os números são relativamente sem importância; essa divisão em mandamentos positivos e negativos eram largamente homiléticos – o sermão para ter cuidado com a tentação e obedecer a Deus com o corpo inteiro era o que importava, e não os números.
As doze famílias em que a lei foi categorizada estavam em acordo com o número das doze tribos de Israel. Estas foram subdividas em doze famílias de mandamentos afirmativos e doze de negativos. As famílias de mandamentos afirmativos preocupavam-se com: (1) Deus e Sua adoração, (2) o santuário e o sacerdócio, (3) sacrifícios, (4) pureza e impureza, (5) esmolas e dízimos, (6) coisas para se comer, (7) Páscoa e outras festas, (8) regra e julgamento, (9) verdade e doutrinas, (10) mulher e matrimônio, (11) julgamentos criminais e punições, e (12) julgamentos em casos civis. Já as famílias negativas preocupavam-se com: (1) Falsa adoração, (2) afastamento do pagão, (3) coisas sagradas, (4) sacrifícios e sacerdotes, (5) carnes, (6) campos e colheita, (7) casa de doutrinas, (8) justiça e julgamento, (9) festas, (10) castidade, afinidade e pureza, (11) casamentos, e (12) o reino. O número total de mandamentos, que é bem acima dos usuais dez que as pessoas, em média, lembram quando pensam sobre a lei, e a confusa divisão deles, fácil e efetivamente ilumina várias passagens do Novo Testamento que falam dos detalhes e fardos da lei. (Hb 9.1,10; At 15.10; Ef 2:15)
O fato das leis específicas que compõem estas famílias terem sido retiradas de todas as partes do Pentateuco enfatiza outro muito importante fato que não deve ser obscurecido na divisão da lei que os Judeus fizeram – e este fato é que a lei era também considerada como uma unidade. Mandamentos de toda parte foram igualmente importantes e vinculados à vida do Israelita, e o agrupamento de variadas leis em cada uma das famílias comprova isso.
O caráter único da lei é mais visto através da percepção das penalidades, que são ligadas a certos mandamentos em cada uma das três categorias da lei – os mandamentos, julgamentos e ordenanças. Uma das leis na primeira divisão dos mandamentos trazia a obrigação de guardar o dia do sábado.
Quando um determinado israelita transgredia este mandamento ao coletar varas neste dia, a penalidade era a morte por apedrejamento (Nm 15.32-36). Um dos preceitos da categoria dos julgamentos dizia respeito a deixar a terra ter um ano sabático de descanso. Por 490 anos Israel ignorou este mandamento, e Deus resolveu esta questão enviando o povo ao Cativeiro Babilônico, onde muitos deles morreram (Jr 25:11). Na terceira categoria, um dos regulamentos dizia respeito à maneira apropriada de adorar. Isto foi transgredido por Nadabe e Abiú, que foram punidos com mortes imediatas quando ofereceram fogo estranho diante do Senhor (Lv 10.1-7). Em cada um destes três exemplos, a punição por desobediência envolvia a morte, apesar que a violação era de uma parte diferente da lei. Os mandamentos referentes à terra ou adoração não eram menos ligados, e nem a punição era menos severa do que o mandamento de guardar o sábado, que era um dos primeiros dez mandamentos. A lei foi dada como uma unidade. (Uma coisa que pode ser irônica e observada é que Nadabe e Abiú não eram cristãos, então eles poderiam afirmar que eles não estavam debaixo de nenhuma lei, exceto dos Dez Mandamentos e assim serem poupados!)
O uso que Tiago faz da lei é baseado no mesmo conceito da natureza unitária da lei. Quando trata do problema da parcialidade nas sinagogas, Tiago deprecia isto se baseando que entra em contradição com a lei de amar seu próximo como a si mesmo (Lv 19.18; Tg 2:8)
A única violação, diz ele, os tornam culpados em toda a lei (Tg 2:10). Ele não pode fazer uma afirmação tão drástica caso a lei não seja considerada como uma unidade. Tudo isto, logicamente, tem um grande impacto na remoção da lei; pois isto parece pontuar o fato que, a menos que o Novo Testamento diga de maneira bem expressa, uma parte da lei não pode ter fim sem a remoção dela inteira.
Evidência Espiritual
A mais antiga declaração específica no tempo do Novo Testamento, que a Lei tinha terminado foi nas discussões do Concílio de Jerusalém. Antes deste concílio a questão era se a circuncisão era ou não necessária para a salvação. Após ouvirem as evidências, da parte de Pedro e Paulo, de que Deus estava salvando gentios à parte da lei e suas ordenanças, Tiago declarou enfaticamente que a circuncisão não era um pré-requisito para que os gentios fossem salvos (At 15.19). Ao testificar uma preocupação com o problema, Pedro descreveu a lei como “um jugo sobre a cerviz dos discípulos, que nem nossos pais nem nós pudemos suportar” (v.10). A necessidade da circuncisão não era a única questão que os judaizantes estavam querendo incomodar os gentios convertidos, uma vez que eles também estavam tentando obrigá-los a guardar toda a lei (v.24).
Nas cartas que o concílio autorizou o envio para as igrejas, Tiago claramente estabeleceu que isto não era obrigatório para os gentios convertidos (v.24). Ele pediu-lhes para coibir o exercício de certas práticas, mas não baseando-se que eles estavam debaixo da lei, mas simplesmente em razão do amor pelos seus irmãos judeus e pelo bem da unidade da igreja. Se houve alguma vez uma boa oportunidade para dizer que os gentios estão debaixo da lei, essa era a oportunidade; por isso teriam resolvido a questão de maneira simples e rápida. Mas os apóstolos, que eram judeus, reconheceram que a lei não tinha mais força, e eles não tentaram impor isto.
O Concílio reconheceu o que Paulo estabeleceu depois na sua excelente epístola doutrinária aos Romanos, isto é, “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4). Este é o mesmo tema que Paulo havia pregado anteriormente na sinagoga de Antioquia de Pisídia, na sua primeira viagem missionária, quando ele resumiu seu sermão ao dizer: “Por meio dele, todo aquele que crê é justificado de todas as coisas das quais não podiam ser justificados pela lei de Moisés.” (At 13.39). Nestas passagens, assim como em outras nos escritos paulinos (cf. Gl 5.1; Rm 3.21-22; 7.6), é deixado claro que independentemente do que a lei poderia ou não fazer, isso chegou ao fim com a obra de Cristo na cruz. Comentando na frase específica “o fim da lei”, Chafer concluiu:
Alguns veem que só Ele, com seu sofrimento e morte, pagou a penalidade que a lei impôs e também descarregou a acusação contra o pecador, que se compreende em perdão. Outros veem que Cristo cumpriu a lei ao pagar o preço que o santo Criador queria, o que é compreendido na justificação. Indubitavelmente estas duas concepções são partes desta passagem; mas será observado que tudo o que for feito é feito por aqueles que creem- sem mais nenhuma outra condição- e esta crença resulta na concessão da justiça de Deus.
Há uma outra passagem nos escritos de Paulo que, por ser mais particular, é mais enfática em relação ao término da lei. Em 2 Coríntios 3.7-11, Paulo faz uma comparação entre o que é ministrado por Moisés e o que é ministrado por Cristo. O que é ministrado por Moisés é chamado de uma ministração de morte, e é dito, de maneira específica, que foi escrita e gravada em pedras.
A única parte da Lei Mosaica que foi escrita em pedras foram os Dez Mandamentos – aquela categoria que alguns designam como a parte moral da lei. Assim, esta passagem diz que os Dez Mandamentos são uma ministração de morte; e mais ainda, a mesma passagem declara, em termos inequívocos, que eles estão eliminados (v.11). A linguagem não poderia ser mais clara, e ainda há poucas verdades de que é mais difícil convencer pessoas. Todos os tipos de manobras exegéticas se passam na tentativa de fazer esta passagem dizer algo mais.
O autor da carta aos Hebreus é claro, também, no ensino de que a lei foi substituída (Hb 7:11-12). Neste capítulo, o autor mostra que o sacerdócio de Melquisedeque é maior do que o sacerdócio de Arão, e a prova que ele cita refere-se ao dízimo. Abraão deu a décima parte dos seus bens a Melquisedeque, e desde que Levi – bisneto de Abraão, de onde veio o sacerdócio levítico – também pagou a decima parte naquela ocasião em Abraão, todo o sacerdócio levítico é visto como subordinado a Melquisedeque. E então o escritor conclui que se o sacerdócio levítico pudesse trazer perfeição para o povo, não haveria necessidade pelo sacerdócio de Melquisedeque. “Pois quando há mudança de sacerdócio, é necessário que haja mudança de lei.” (Hb 7.12).
Se Cristo é o nosso maior sacerdote hoje, então deve haver uma mudança na lei, visto que Ele não é qualificado como um sacerdote debaixo da organização levítica (ele era da tribo de Judá). Se a lei não se foi nos dias de hoje, então não se tem mais o sacerdócio levítico; mas se Cristo é o nosso maior sacerdote, nós não podemos estar debaixo da lei. Cada oração oferecida no nome de Cristo é uma afirmação do fim da lei.
Assim, a evidência do Novo Testamento força a conclusão que a lei – em sua totalidade, inclusive os Dez Mandamentos – não é mais válida.
O Problema
Mas o Novo Testamento também inclui na sua ética muitos dos mandamentos específicos que eram, originalmente, parte da Lei Mosaica. Se a lei teve fim em Cristo, então por que e com qual base estas determinações mosaicas são vinculadas aos cristãos? Será que o cristão está debaixo da lei (ou pelo menos alguns mandamentos) ou ela realmente teve fim?
Se o Novo Testamento simplesmente citasse os Dez Mandamentos, então a solução do problema seria fácil.
Alguém poderia concluir que as passagens que ensinam que a lei teve fim referem-se a todas as partes, exceto a lei moral. Mas o Novo Testamento apenas reitera nove dos dez mandamentos e ainda cita mandamentos que estão fora da parte moral da lei (Rm 13.9; Tg 2.8). Assim o Novo Testamento não estabelece nenhum padrão pelo qual alguém possa concluir que apenas as partes judiciais e cerimoniais da lei tiveram fim; e o problema continua. Como toda a lei pode ter tido fim, tendo partes sendo repetidas nas epístolas do Novo Testamento?
Algumas Soluções
Uma solução para o problema é simplesmente ignorá-lo. O artigo na lei no Dicionário de Teologia Baker faz isto. O escritor afirma que os cristãos são lembrados de “seus deveres nos termos da lei… Os cristãos estão debaixo da obrigação evangélica do amor e a lei escrita torna-se o nosso guia, uma regra de gratidão.” O único aspecto da lei que teve fim foi o seu poder condenatório. 2 Coríntios 3.7-11 e Hebreus 7.11-12 são ignorados na discussão.
A solução mais usual é a de Calvino, que é seguida por muitos de tradição reformada. Calvino ensinou que a revogação da lei teve referência à liberação da consciência do medo e à descontinuidade das antigas cerimonias judaicas. Ele, então, faz distinção entre a lei moral, que ele diz que foi revogada apenas no seu efeito de condenar o homem, e a lei cerimonial, que ele disse que foi revogada tanto em efeito quanto no uso. Discutindo 2 Coríntios 3, ele apenas faz distinção das diferenças gerais da morte e vida no antigo e novo pacto. Ele tem uma ótima exposição dos Dez Mandamentos, e é interessante notar que na discussão do quarto mandamento ele não considera o Domingo como uma continuação do sábado judeu (como fez a Confissão de Westminster). Assim, Calvino, como muitos que o seguiram, considerou que só parte da lei teve fim e não ela inteira, e os Dez Mandamentos ainda são obrigatórios para a igreja hoje (embora o quarto mandamento, que diz respeito ao sábado, deve ser interpretado como não-literal). Isto ainda não resolve o dilema ou alivia a tensão entre a lei como uma unidade ter tido fim e alguns mandamentos serem retidos.
A solução proposta neste ensaio é basicamente uma que faz distinção entre um código e os mandamentos que estão contidos nele. A lei mosaica foi um de muitos códigos de ética que Deus deu na história. Este código particular continha, como nós vimos, 613 mandamentos específicos. Mas existiram outros códigos dados por Deus. As leis sob as quais a vida de Adão foi governada combinam para a formação do que pode ser chamado de um código para o Jardim do Éden. Houve, pelo menos, dois mandamentos neste código – tomar conta do Jardim e evitar comer o fruto de uma árvore. A Noé foi dado mandamentos que incluíam, depois do Dilúvio, a permissão para comer carne (Gn 9.3). Deus revelou muitos mandamentos, estatutos e leis para Abraão que guiaram sua vida; juntos estes podem ser chamados de código abraâmico de conduta. As leis através de Moisés foram formal e medrosamente codificadas ao serem proferidas do Monte Sinai. O Novo Testamento fala da “lei de Cristo” (Gl 6.2) e da “lei do Espírito da vida” (Rm 8.2). Na lei de Cristo estão as centenas de mandamentos das epístolas do Novo Testamento, e juntas elas formam um novo e distinto código de ética.
A lei mosaica teve fim na sua totalidade como código. Deus não está mais guiando a vida do homem por seu código particular. Ao invés disso, ele introduziu a lei de Cristo. Muitos dos mandamentos individuais dentro da lei são novos, mas alguns não são. Alguns deles, que são velhos, foram também encontrados na lei mosaica e agora foram incorporados na lei de Cristo. Como uma parte da lei mosaica, eles estão completamente, e para sempre, abolidos. Como parte da lei de Cristo, eles são obrigatórios para o crente hoje. Também há mandamentos, na lei de Cristo, dos códigos pré-mosaicos, como, por exemplo, a permissão de comer carne (1 Tm 4.3). Mas a inclusão desta, por exemplo, não significa que é necessário recorrer a contorções teológicas para reter uma parte do código mosaico, de modo que a permissão particular pode ser retida nesta era do Novo Testamento.
Do mesmo modo, não é necessário recorrer a uma exegese não-literal de 2 Coríntios 3 ou de Hebreus 7 ou do quarto mandamento para entender que o código teve fim e mandamentos similares estão inclusos no novo código.
Pode esta procedência não estar comparada com os diversos códigos em uma casa com crianças em crescimento? Novos códigos são instituídos em diferentes estágios de maturidade, mas alguns dos mesmos mandamentos aparecem com frequência. Dizer que o código original teve fim com todos os seus mandamentos não é uma contradição. É tão natural quanto crescer. Assim é com a lei mosaica e a lei de Cristo.
Fonte: Ryrie, C. C. (2010). Dr. Ryrie’s Articles (pp. 84–89). Bellingham, WA: Logos Bible Software.
Original aqui.
Tradução de Lucas Machado.
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