A presente série nada mais é do que o artigo publicado (dividido em partes) pela revista teológica VOX SCRIPTURAE (5:1 – Março de 1995; 43 – 70) intitulado A Questão do Homossexualismo, escrito por Carlos Osvaldo Pinto e Luiz Sayão.
[Leia aqui a Introdução da série]
O Antigo Testamento
O Antigo Testamento (AT) fornece a base de qualquer consideração verdadeiramente teológica sobre a questão do homossexualismo. O ponto de partida de tal investigação é o fato do AT declarar, antes e depois da Queda do homem, que este é feito à imagem de Deus. As várias diretrizes que o AT apresenta quanto à conduta sexual do homem são baseadas nessa pressuposição, e representam não a vontade despótica de um Deus estraga-prazeres, mas a advertência amorosa de um Deus que informa como preservar o privilégio de sermos, na terra, reflexos dEle em nosso caráter e em nossos relacionamentos.
Os homossexuais estão certos em afirmar que sua “opção” sexual não é o único desvio condenado pelas Escrituras. Deixam, porém, de enfatizar a realidade de como tal “opção” viola a imagem de Deus. Para sermos honestos com eles, é significativo observar, antes de analisar o homossexualismo, como cada um desses desvios viola a imagem de Deus ou distorce o seu significado para o homem. Fica claro que todas essas práticas são pecaminosas e condenadas por Deus. Todavia, não se deve concluir que tais desvios são iguais perante Deus em todo e qualquer sentido. O bom senso certamente nos trará maior condenação e repulsa pelo incesto do que pela fornicação.
Desvios Sexuais previstos no Antigo Testamento e suas implicações para a imagem de Deus
Passagem | Desvio | Problema |
Dt 22:23-29 | Fornicação | Desonra à imagem de Deus na outra pessoa. |
Dt 22:22 | Adultério | Viola a imagem de Deus que pertence a outrem (esposa e outra). |
Lv 18:6-18 | Incesto | Viola a imagem de Deus por unir duas expressões muito próximas dessa imagem. |
Lv 18:23 | Bestialidade | Viola a imagem de Deus por unir o que é expressão da imagem com o que não é. |
Lv 18:22; 20:13 | Homossexualismo | Viola a imagem de Deus por unir duas expressões iguais dessas imagem impedindo o reflexo da pluralidade e criatividade divina evidente na procriação. |
Dentre as várias passagens a considerar no Antigo Testamento, para estabelecermos um quadro relativamente completo do tema, certamente é preciso começar por aquela que é, aos olhos dos conservadores, a primeira condenação do homossexualismo, Gênesis 19:4-11. Defensores do estilo de vida gay transformaram esse capítulo de Gênesis num campo de batalha, com a esperança de desarmar aqui a pressuposição universal de que Deus não vê com bons olhos o homossexualismo.
Gênesis 19:4-11
A história é bem conhecida. Antes de enviar seu juízo contra Sodoma e Gomorra, o Senhor Deus enviou dois anjos para avisar Ló, sobrinho de Abraão, do que haveria de acontecer. A casa de Ló é atacada por uma turba de cidadãos de Sodoma que exigem que Ló apresente os dois visitantes para os conhecerem (19:5).
Sherwin Bailey, erudito anglicano que influenciou a alteração da lei britânica sobre sodomia, argumentou que o uso da palavra conhecer, hebraico yada’, indica apenas isso, que os homens de Sodoma queriam determinar com conhecimento de causa se aqueles dois estranhos, que haviam chegado à casa de um estrangeiro recém-radicado na cidade, não eram espiões.[1] Assim, o crime de Sodoma teria sido simples falta de hospitalidade, não tentativa de abuso sexual. Em defesa de tal proposta alguns lançam mão de Ezequiel 16:49, alegando que o pecado de Sodoma foi exclusivamente orgulho e falta de compaixão para com o necessitado.[2]
Ninguém pode questionar que um sentido normal e muito freqüente do verbo hebraico yada’ é “conhecer, notar, observar, perceber”,[3] com 929 de ocorrências no AT. Todavia o sentido majoritário de um termo não é o que determina o seu significado num contexto qualquer. O contexto faz exigências semânticas que somente uma eisegese pode ignorar. Em Gênesis, o verbo ocorre apenas doze vezes, e em dez delas tem o sentido indiscutível de relacionamento sexual. Além do mais, as palavras de Ló com respeito a suas filhas, “que não conheceram homem” (ARA, “virgens”), seriam puro nonsense caso o exegeta opte pelo sentido mais comum do verbo. Ainda além disso, a proposta de Ló à turba (“tratai-as como vos parecer”) seria totalmente desproporcional à exigência que (supostamente) lhe fora apresentada, descobrir a identidade dos estrangeiros que hospedara.
Os que advogam uma “inocente falta de cortesia” por parte dos sodomenses (para evitar idéias pré-concebidas) geralmente ignoram Judas 7. Esta passagem indica que os pecados de Sodoma e Gomorra incluíam “ir após outra carne” apelthousai opiso sarkos heteras e “praticar imoralidade grosseira ekporneusasai. Quando Judas 7 é lido à luz de uma visão global da história das civilizações cananitas, as prescrições mosaicas contra o homossexualismo e a bestialidade encontram nas palavras do irmão de Jesus um comentário sucinto e esclarecedor. A culpa dos moradores de Sodoma não pode ser limitada à falta de civismo e hospitalidade, exceto às custas da integridade exegética do intérprete.
Levítico 18:22 e 20:13
Estes dois versículos, que são, por assim dizer, comentários sobre o sétimo mandamento, dizem o seguinte: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher: é abominação” (18:22, ARA). “Se também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram cousa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles” (20:13, ARA). Além de condenar com pena de morte a prática do homossexualismo, o texto o considera uma abominação to`evâ, termo que tem a idéia de provocar repulsa, ódio e rejeição. É muitas vezes aplicado as práticas detestadas por Deus como idolatria (Dt 7:25), bestialidade (Lv 18:26) e espiritismo (Dt 18:12).
As duas linhas de raciocínio empregadas pelos defensores do homossexualismo para anular o efeito devastador desses versículos são as seguintes. Em primeiro lugar, que tais versículos estão culturalmente datados e limitados por estarem inseridos no chamado “Código da Santidade”, um documento cuja preocupação central é o ritual religioso, não a ética social. Em segundo lugar, que esta e outras proibições “inocentes” da lei foram eliminadas pela vinda de Jesus Cristo, que é “o fim da lei” (Rm 10:4).
Não é preciso muito esforço para perceber que essas duas linhas de argumentação apresentam sérias deficiências lógicas e exegéticas. Só mesmo quem presume (e impõe ao texto do AT) uma completa dicotomia entre o movimento profético e a tradição sacerdotal em Israel aceitará que o Código da Santidade (cujos limites textuais são difíceis de definir) não contém implicações éticas. Só mesmo quem tem motivos ulteriores para eliminar o conceito de reprovação bíblica para o homossexualismo diria que a ausência de menções específicas nos escritos proféticos demonstra que os guardiões da moral israelita não viam na prática um problema ético.
Entre as práticas proibidas no chamado Código de Santidade estão o adultério, (“Nem te deitarás com a mulher de teu próximo, para te contaminares com ela”, Lv 18:20), a bestialidade (“Nem te deitarás com animal, para te contaminares com ele, nem a mulher se porá perante um animal para ajuntar-se com ele: é confusão”, Lv 18:23), e a dedicação de filhas à prostituição (“Não contaminarás a tua filha, fazendo-a prostituir-se; para que a terra não se prostitua, nem se encha de maldade”, Lv 19:29). Pela lógica dos que defendem o homossexualismo, nenhuma dessas ações teria implicações éticas, sendo apenas uma questão
de identidade ritual do povo de Israel. A falácia de tal raciocínio fica evidente na condenação do adultério e da prostituição por quase todos os profetas escritores.
A ausência de menção ao homossexualismo nos profetas pode ser melhor explicada pelo fato dos profetas falarem diretamente às necessidades de sua geração, com base nas prescrições da Lei. Em 1 Reis 15:12 lemos que o rei Asa eliminou de Israel os prostitutos-cultuais de Judá. Isso poderia ter tido o efeito salutar de coibir a prática do homossexualismo e limitar as menções nos livros proféticos, todos posteriores ao reinado de Asa (911-870 a.C.).[4]
A teoria de que a lei terminou com a vinda de Cristo e que, portanto, qualquer proibição veterotestamentária foi ab-rogada revela uma insensibilidade teológica muito grande. Adotamos o ponto de vista de que, como um código de vida, um “pacote” por assim dizer, a Lei foi integralmente cumprida em Cristo (Rm 10:4) e que a mudança de sumo-sacerdócio indica a mudança de sistema de vida (Hb 7:11). Concordamos com os que afirmam que se fôssemos manter a proibição com base nos mandamentos do AT, deveríamos também manter a punição, a pena capital ali prescrita (Lv 20:13). Daí, todavia, a dizer que, por isso, toda a noção de lei foi abolida para o cristão e que os princípios de vida ilustrados na Lei são inúteis ou desnecessários, como advogam os pró-homossexuais, há uma gritante diferença. O princípio que governa a proibição ao homossexualismo também se percebe na revelação geral. A consciência não-programada refuga diante do pensamento da prática homossexual.
Um panfleto publicado pelo Grupo Gay da Bahia sugere que apenas 36% das culturas condenam o homossexualismo ao passo que 64% delas são favoráveis,[5] mas o uso de tal estatística é claramente suspeito, primeiro pela sua terminologia: o que significa “ser favorável”? Aprovar, recomendar, ou simplesmente tolerar? É suspeito também por causa de sua “modernidade”. A atitude dominante nas sociedades modernas é a permissividade alienada, em que meia dúzia de cabeças pensa pelo restante da população, que aceita de maneira passiva estilos de vida absurdos, simplesmente porque figuras famosas os adotam. A maioria dos homens é a favor do sexo livre, até que sua filha resolve praticá-lo. Por fim, o que o panfleto não indica é que o estudo de onde a estatística foi extraída, realizada por C. S. Ford e F. A. Beach em 1951 e intitulado Patterns of Sexual Behavior (Padrões de Comportamento Sexual), focalizava 76 sociedades primitivas, não expostas ao cristianismo, e que em algumas delas a atividade homossexual estava ligada ao xamanismo. Naturalmente isso leva a pensar nas palavras de Paulo em Romanos 1, onde ele trata de idolatria e desvios sexuais, mas essa consideração deve aguardar ainda um pouco.
A falácia dessa posição também se vê no fato de que, embora despida de seu caráter comunitário nacional, a repulsa ao estilo de vida homossexual se encontra também no Novo Testamento (NT), nas cartas de Paulo (Rm, 1 Co e 1 Tm) e de Judas. Embora seja razoável supor que a razão principal de Paulo fazer restrições a esse estilo de vida tenha sido sua presença na lei mosaica, Morris tem alguma razão ao afirmar que, “a igreja os adotou… porque são princípios universais, eternos, que governam os relacionamentos da humanidade”.[6]
As duas linhas de raciocínio empregadas pelos pró-homossexuais para tirar de cena as proibições de Levítico são, portanto, inadequadas e inaceitáveis. Levítico confirma o que a história de Gênesis indicava desde o Éden. A normalidade humana aos olhos do Criador é que a sexualidade se expresse tal como foi criada, entre um homem e uma mulher.
1 Samuel 18:3-4; 20:41; 2 Samuel 1:26
O já citado panfleto do Grupo Gay da Bahia menciona o relacionamento entre Davi e Jônatas como indicação da antiguidade (e validade) do homossexualismo. Tal alegação não é nova nem criativa. Há muito que os dois heróis israelitas são reivindicados como símbolos da “normalidade” do homossexualismo. Para a pessoa predisposta é muito fácil impor nuances homossexuais às narrativas citadas. Difícil é sustentá-las à luz de um exame neutro do texto e das biografias dos dois homens.
Tanto Jônatas quanto Davi eram heterossexuais ativos. 2 Samuel 4:4; 9:3 e 1 Crônicas 8:34 indicam que Jônatas era casado e sexualmente ativo. A respeito de Davi é quase desnecessário mencionar suas seis esposas (2 Sm 3:1-5), o acréscimo de Bate-Seba (2 Sm 11:27), e as concubinas — cujo número varia entre dez (2 Sm 15:16) e oitenta, herdadas por Salomão (Ct 6:8). Assim, é improvável que houvesse tendências homossexuais em qualquer dos dois amigos.
Será, porém, que não teria havido um caso de bissexualidade por parte de ambos, episódios de homossexualidade opcional? Um detalhe exegético-literário dos livros de Samuel torna tal possibilidade muito remota. Esses dois livros cumprem o papel de demonstrar à nação israelita que sua sobrevivência política sempre se deveu à profundidade e à largueza da graça de Deus, não à capacidade de seus líderes e heróis. Eli é apresentado em todo o seu fracasso como pai e guia espiritual de Israel. Samuel, íntegro como profeta e juíz, também falha como pai e modelo (1 Sm 8:3). Saul, de tão auspicioso começo, acaba abandonado por Deus e encerra tragicamente sua vida no monte Gilboa por causa de sua rebeldia. Davi, a quem Deus promete não abandonar, é o mais visado em termos de repreensões divinas. Seu adultério e homicídio são vividamente denunciados pelo profeta (2 Sm 12); sua vida de atividade militar é apresentada como a razão para que não construísse o templo (1 Cr 22:8); sua transigência com a rebeldia de Absalão é veementemente denunciada por Joabe seu sobrinho e subordinado (2 Sm 19:5-7) e, por fim, seu orgulho foi repreendido quando do incidente do censo (2 Sm 24; 2 Cr 21). Tivesse ocorrido em sua vida uma ocasião que fosse em que a lei de Moisés tivesse sido tão flagrantemente desobedecida quanto num episódio homossexual, o historiador não a teria deixado passar em branco, especialmente porque, naqueles tempos, isso teria soado muito mais do que escandaloso e absurdo.
A frase tão cara aos homossexuais, 2 Samuel 1:26, “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; tu eras amabilíssimo para comigo! Excepcional era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres”, não afirma o que dela extrai o lobby gay. Duas considerações baseadas no texto original provam isso. A primeira vem do sentido amplo que a palavra hebraica ‘ahavâ possui, cobrindo basicamente o mesmo espectro da palavra portuguesa “amor”, que vai do mero desejo sexual (cf. 2 Sm 13) a expressões de apreço estético e moral. Seu significado num determinado contexto não pode ser definido pelo leitor, e sim pelo próprio contexto. A segunda consideração é contextual e devastadora para a posição pró-homossexual. As mesmas palavras usadas por Davi para expressar seu sentimento em relação a Jônatas — os verbos ‘ahav e na am, “amar” e “ser agradável”, respectivamente — são usadas no versículo 23 em relação a Saul, que obviamente não nutria por Davi o que se poderia chamar de uma relação amistosa. Não seria esta a prova suficiente de que o relacionamento de Davi e Jônatas superava o das mulheres, não porque tivesse expressão homoerótica, mas porque se situava num outro plano, porque era movido por verdadeiro altruísmo, respeito e admiração por valores morais como coragem, nobreza, sinceridade e devoção a Deus?
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[1]D. Sherwin Bailey, Homosexuality and the Western Christian Tradition (1955; nova ed., Hamden CT: Shoestring Press, 1975)
[2]Embora as cidades da campina certamente merecessem tal condenação, isto não significa que essas acusações tenham sido a única causa do fogo divino. Ez 16:50 menciona as “abominações” de Sodoma, que poderiam perfeitamente incluir o homossexualismo, que Lv 18:22 define como tal.
[3]Nelson Kirst, et. al., eds., Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português (São Leopoldo RS: Sinodal e Petrópolis: Vozes) 86.
[4]Os reis de Judá Asa, Josafá e Josias marcaram seus reinados pelo repúdio à idolatria e à prática da prostituição que incluía o homossexualismo. Veja 1 Rs 14: 24; 22:47 e 2 Rs 23:7.
[5]Grupo Gay, “Dez Verdades”, ¶ 5. Não se pode esquecer que infanticídio, mutilações, sacrifícios humanos, prostituição ritual etc. também são costumes de diversos povos não expostos à moralidade judaico-cristã. Veja Jacques Marcireau, História dos Ritos Sexuais, trad. Fernando de Castro Ferro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974).
[6]Paul D. Morris, Shadow of Sodom: Facing the Facts of Homosexuality (Wheaton IL: Tyndale, 1978) 85.
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