A presente série nada mais é do que o artigo publicado (dividido em partes) pela revista teológica VOX SCRIPTURAE (5:1 – Março de 1995; 43 – 70) intitulado A Questão do Homossexualismo, escrito por Carlos Osvaldo Pinto e Luiz Sayão.
[Leia aqui a Introdução da série]
[Leia aqui A questão da homossexualidade no Antigo Testamento]
Também sugerimos a leitura de “Uma perspectiva cristã à homossexualidade”.
Novo Testamento
O ensino do Novo Testamento sobre o assunto é geralmente minimizado pelos defensores do estilo de vida homossexual. Geralmente a primeira referência é ao silêncio de Jesus Cristo quanto ao assunto. Dizem que, “Jesus Cristo nunca falou sequer uma palavra contra gays e lésbicas. Condenou sim os hipócritas e os intolerantes”.[1] A falácia de tal argumento é tanta que mal merece refutação, mas por amor a um tratamento completo vale a pena considerá-lo.
O homossexualismo certamente não é o único assunto sobre o qual Jesus nada falou. A seguir a linha de argumento acima proposta, teríamos de concluir que o uso de tóxicos, o estupro, o incesto, a escravidão humana são práticas legítimas, já que Jesus não as condenou especificamente, e que falar contra os que a praticam é ser hipócrita e intolerante. A verdade é que Jesus falou sobre relacionamentos sexuais, indicando que a impureza sexual, porneia, se origina no coração do homem e não precisa de consumação física para ser ofensiva ao caráter santo de Deus (Mt 5:27-30), indicando que o relacionamento original e ideal de Deus era heterossexual, monogâmico e permanente (Mt 19:3-12).
1 Coríntios 6:9-10
Cronologicamente esta é a primeira referência de Paulo ao assunto de homossexualismo. O texto diz:
Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus. [ARA]
O debate gira em torno das palavras gregas malakos e arsenokoites. A primeira delas é usada para descrever roupas e tecidos, indicando que são finos e suaves (Mt 11:8)[2]: indica ainda pessoas que são “macias, efeminadas, especialmente os catamitas, homens e meninos que se permitem ser usados homossexualmente”.[3]
Defensores do estilo de vida homossexual sugerem que a palavra era limitada aos meninos usados na prática da pederastia no contexto greco-romano, mas o uso em literatura extrabíblica sugere o contrário. Assim, Moulton e Milligan indicam que um músico, por nome Zenóbio, foi assim designado devido ao seu estilo de vida, e que o adjetivo foi “grafitado” numa inscrição macedônia para satirizar o modo de vida do homenageado.[4] Acrescente-se a isso a distinção entre Paulo e Platão. Enquanto o primeiro faz constante referência ao substantivo arsen, Platão usa o termo neos, “jovem, novo” para descrever a parte passiva no relacionamento pederástico, que era comum no sistema educacional grego, que ele discute em suas Leis (8:836). Luciano, satirista e historiador do segundo século de nossa era, classifica como malakoi certos sacerdotes pagãos cuja vida era sexualmente promíscua.[5] Mare endossa essa linha de pensamento ao descrever os malakoi como “prostitutos cultuais”.[6]
A conclusão mais plausível é que a palavra malakoi aponta para o indivíduo passivo numa relação homossexual. A Nova Versão Internacional traduziu assim a palavra em 1 Coríntios 6:9 (“homossexuais passivos”). C. K. Barrett, famoso erudito inglês, optou por essa mesma interpretação.[7]
A outra palavra descritiva empregada por Paulo é arshnokoithj, e aparece também em 1 Timóteo 1:10: “para os que praticam imoralidade sexual e os homossexuais, para os seqüestradores, para os mentirosos e os que juram falsamente; e para todo aquele que se opõe à sã doutrina” (NVI). A palavra é composta de duas outras: arsen que significa “macho”, com fortes conotações sexuais, e koite, que significa “cama, leito” em geral, mas que também é um eufemismo para relação sexual.[8]
Alguns defensores do chamado “homossexualismo monogâmico” sugerem que Paulo estava limitando sua condenação aos pederastas ativos, ou seja, àqueles que exploravam menores em relações sexuais, nada falando sobre relação homoeróticas entre dois adultos com mútuo consentimento. Tal sugestão, embora tenha um verniz de erudição, ignora o consenso dos lexicógrafos, que atribui à palavra arsenokoites o sentido mais amplo de homossexual ativo. Além disso, o contexto de uso do termo, é uma lista de vícios muito abrangente, encabeçada pelo adjetivo inclusive pornos, “imoral” ou “sexualmente impuro”.
Paulo está visando aquelas práticas que testemunhara em Corinto, cidade de moral extremamente baixa, em que os vícios dos romanos se juntavam à “sofisticação” intelectual dos gregos para produzir um ambiente de promiscuidade e permissividade sem igual no império romano. Sua preocupação não é delimitar o caráter explorativo ou consentido dos vícios alistados. Não há adultérios explorativos e adultérios não-explorativos, nem avareza responsável e avareza irresponsável, roubo explorativo e roubo não-explorativo. Independentemente do consentimento dos participantes e demais envolvidos, todas as práticas aqui descritas pelo apóstolo são deploráveis e condenáveis.
Se, por um lado, tal perspectiva é muito negativa para os ouvidos modernos, por outro lado, nesse mesmo texto, o homossexualismo é percebido dentro de uma perspectiva não-determinista. Enquanto muitos “defendem” os homossexuais por ser essa a sua condição, ainda que evidências mostrem que a esmagadora maioria deles gostaria de ser diferente e sofre com as suas inclinações, Paulo apresenta uma esperança nítida, já demonstrada na história da vida de alguns ex-homossexuais transformados. O imperfeito do verbo ser (v.11) aponta para o que eles foram no passado, o que fica mais forte com a adversativa alla que enfatiza o contraste entre o presente e o passado, o que exige uma transformação.[9]
Romanos 1:26-27
Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por outras contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão [NVI].
Esta passagem é a que mais tem sido empregada pelos pró-homossexuais na tentativa de reverter o quadro de condenação à pràtica no Novo Testamento.
A primeira estratégia é afirmar que Paulo estava, nessa passagem, impondo sua ética judaica aos seus leitores que viviam sob uma ética greco-romana. Essa é a visão de Letha Scanzoni, uma erudita protestante norte-americana que recentemente admitiu publicamente seu lesbianismo. Em seu livro Is The Homosexual My Neighbor? (Será que o Homossexual é o Meu Próximo?), Scanzoni e Mollenkott afirmam: “…é duvidoso que Paulo esteja escrevendo sobre natureza no sentido de costume, a não ser que se refira a uma violação de leis ou costumes judaicos”.[10] Duas razões devem ser consideradas na avaliação dessa teoria.
Em primeiro lugar, é preciso dar o devido valor ao cosmopolitanismo de Paulo. Educado em Tarso, terceiro centro cultural de sua época, Paulo certamente conhecia bem sua cultura greco-romana. Ele podia citar de memória Arato e Epimênides, e citava em suas cartas listas de virtudes aprovadas pelos estóicos e listas de vícios por eles condenados. Sugerir que Paulo era intelectualmente bitolado pelo seu judaísmo é simplesmente ignorar a evidência disponível.
Em segundo lugar, o uso do adjetivo grego fusike e do substantivo fusis apontam não para um costume judaico, mas para a constituição ou estrutura de um indivíduo conforme determinada pelo Criador, não condicionada por cultura ou decisão própria.[11] Esse é o sentido que Paulo dá ao substantivo e aos adjetivos relacionados em outros trechos como Romanos 11:21 e 1 Coríntios 11:14, “Ou não vos ensina a própria natureza fusis que é desonroso para o homem usar cabelo comprido?” Este texto encontra paralelo marcante nos escritos de Epicteto, filósofo estóico posterior a Paulo.[12] Teólogos e ministros evangélicos que desejem afirmar que “natureza” em Romanos 1 significa apenas a genética individual do homossexual rejeitam até mesmo a opinião do famoso Platão, que afirmou em suas Leis (2:636):
Penso que o prazer que pode ser considerado natural é aquele que advém do intercurso entre homem e mulher; todavia, o intercurso entre homem e homem, ou entre mulher e mulher, é contrário à natureza, e a ousada tentativa [de praticá-lo] se deveu originalmente a uma cobiça desenfreada. Os cretenses sempre foram acusados de terem inventado a história de Zeus e Ganimedes porque queriam justificar-se no desfrute de prazeres antinaturais pela prática do deus que eles consideravam seu legislador.
E. B. Cranfield, autor do mais conceituado comentário sobre o livro de Romanos existente em nosso idioma, escreve:
Por ‘natural’ e ‘contra a natureza’ Paulo significa claramente ‘em conformidade com a intenção do Criador’, respectivamente. Não é impossível que Paulo tivesse algum conhecimento da grande importância que ‘natureza’ tivera no pensamento grego durante séculos; é muito provável que ele estivesse ciente do seu emprego na filosofia popular contemporânea. Contudo, o fator decisivo no emprego que dela faz é a sua doutrina bíblica da criação.[13]
Tal como Jesus fizera com os fariseus, no debate sobre o divórcio, Paulo leva seus leitores (e interlocutores) além das diferenças éticas entre judeus e gentios, até o momento indiscutível do estabelecimento da fusij humana e do relacionamento sexual conforme concebido por Deus. O próprio uso da expressão homoiomati eikonos, “semelhança da imagem”, no versículo 23 aponta para o linguajar da narrativa de Gênesis 2 e para o relacionamento que de fato refletiria não apenas a intimidade, o mútuo amor e respeito da Trindade, mas também o poder criativo do Deus que criara Adão e Eva como sua imagem.
A segunda estratégia para eliminar esta passagem como argumento anti-homossexual é a de que Paulo não estava condenando o homossexualismo em si, mas perversões homossexuais praticadas por heterossexuais, ou conforme chamados hoje em dia, bissexuais. Mesmo John Stott, cuja posição no assunto pretende um equilíbrio sugere que esta era a posição de Paulo. Ele diz:
Embora Paulo nada soubesse da moderna distinção entre os “invertidos” (que têm predisposição homossexual) e os “pervertidos” (que, embora heterossexualmente predispostos, envolvem-se em práticas homossexuais), é a estes últimos que está condenando, não aos primeiros. Isso deve ser assim, porque são descritos como pessoas que “abandonaram” as relações naturais com as mulheres, ao passo que nenhum homem exclusivamente homossexual as teria experimentado.[14]
Tal argumento não é sustentável por duas razões. Em primeiro lugar, o contexto da passagem é universal, e não individual. Paulo não tem em vista indivíduos, mas aquela espiral descendente em que toda a raça participa. Nos outros vícios e pecados presentes na passagem não se pode diferenciar entre depravações naturais e anti-naturais, entre calúnias responsáveis e irresponsáveis. Além disso, o paralelismo entre os verbos metelaksan, “trocaram”, e aphentes, “deixando”, sugere que Paulo não está pensando em uma adição de atos homossexuais a um comportamento heterossexual, mas na completa rejeição da ordem criada em favor da perversão ditada pelas “paixões vergonhosas” (v. 26). McQuilkin concorda e afirma:
Na verdade Paulo não fala de um declínio individual de um grau de escuridão para outro inferior, mas do declínio de toda a sociedade, embora, é claro, um indivíduo possa seguir o mesmo curso. Como faz em outros assuntos, Paulo aqui identifica a ordem natural das coisas e diz que o pecado homossexual a viola. Ele não fala da violação do que poderia ter sido a natureza particular de um indivíduo. Identificar gaivotas que se acasalam com o mesmo sexo ou documentar que entre 2 e 4 por cento dos indivíduos de uma população são totalmente invertidos sexualmente não prova que essa é a ordem normal das coisas. Pode bem ser evidência do contrário. Uma aberração não se constitui em algo natural simplesmente em virtude de sua existência.[15]
Em segundo lugar, aos que advogam que Paulo tinha em mente apenas a prática abusiva da pederastia, fica o ônus de provar por que ele teria mencionado a prática do lesbianismo. Claramente, ele tinha mais em mente que “simples” pederastia. O conhecimento generalizado do comportamento devasso dos três últimos imperadores romanos e da licensiosidade de suas cortes faria com que mesmo o menos perspicaz dos leitores originais de Romanos definisse bem o alvo das palavras do apóstolo.
Como um adendo a essas duas observações, vale a pena observar a tríplice ocorrência do sinistro refrão paredoken autous ho theos em nosso texto (Rm 1:24, 26, 28). Nas suas três ocorrências em Romanos 1 e na ocorrência única em Atos 7:42, o verbo paradidomi descreve um ato judicial em que o curso de ação escolhido por uma sociedade, em desafio à ordem exigida por Deus, acaba por ser determinado soberanamente como o instrumento de juízo contra aquela sociedade. A linguagem de Paulo em Romanos, em que o homem preferiu glorificar a criatura (pássaros, quadrúpedes e répteis, v. 23) em lugar do Criador, sugere mais uma vez que seu referencial é a Criação. Por isso, alegar que tinha em mente apenas abusos homossexuais por heterossexuais, deixando aberta a porta para o homossexualismo como uma forma apropriada de relacionamento conjugal (ou meramente sexual), é ignorar o texto, o contexto e a teologia do autor em favor de pressuposições ou preferências pessoais.
Esclarecida a perspectiva paulina, vale ainda ressaltar a situação da homossexualidade no contexto do capítulo. Paulo apresenta a decadência espiritual do mundo gentio que é iniciada com a rejeição da revelação natural de Deus (Rm 1:19-21), a prática da idolatria (v. 23) e a imoralidade homossexual (vv. 26-27). Dois elementos aqui merecem nossa atenção, conforme percebeu J. D. G. Dunn[16]: (1) A imoralidade sexual é conseqüência da ira de Deus, (Käsemann); e (2) há uma relação nada acidental entre idolatria e imoralidade. A rejeição da revelação divina provoca maldição na cultura, levando-a a um processo de degeneração. A idolatria marca essa descida em direção ao caos, pervertendo a visão da realidade e da prática humana.
Em certo sentido, a adoração dos deuses criados pelo homem não passa de uma adoração disfarçada e dissimulada do próprio homem, isto é, de si mesmo. Assim os deuses criados são feitos conforme os anseios e desejos humanos (muitas vezes maus). Aparece aí a face narcisista da idolatria. Nasce um voltar-se para si como ponto de referência absoluto. É mais do que evidente que o narcisismo egocêntrico é absolutamente compatível com o homossexualismo, onde não se ama o diferente, mas sim o semelhante. Não acho espaço para sentir-me atraído por aquilo que é distinto e complementar em relação à minha especificidade sexual. Ao contrário, a derivação homossexual da idolatria tem de fato a conotação do que poderíamos chamar de “o elogio do espelho!” Cremos que tais observações serão úteis para a percepção da lógica interna existente entre esses elementos.
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[1]Grupo Gay, “Dez Verdades”.
[2]F. Wilber Gingrich, Léxico do Novo Testamento Grego/ Português, rev. F. W. Danker, trad. Júlio P. T. Zabatiero (São Paulo: Vida Nova, 1984) 129.
[3]W. F. Arndt e F. W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Christian Literature (4ª ed., Chicago: Univ. of Chicago, 1971) s.v. “malakoj”, 489-490; também, R. K. Harrison, “malakiaj”, em Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, ed. Colin Brown, trad. Gordon Chown (São Paulo: Vida Nova, 1982) 2:293-294.
[4]J. H. Moulton e G. Milligan, The Vocabulary of the Greek New Testament (nova ed., Grand Rapids MI: Eerdmans, 1971) 387.
[5]A referência é incerta, talvez do Diálogo dos Deuses 9.1, segundo H. G. Liddell e R. Scott, A Greek-English Lexicon (Londres: Oxford Univ., 1973) 1077.
[6]W. Harold Mare, “1 Corinthians”, em The Expositor’s Bible Commentary, 12 vols., ed. F. E. Gaebelein (Grand Rapids MI: Zondervan, 1976) 10:223.
[7]C. K. Barrett, A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (Nova Iorque: Harper & Row, 1968) 140.
[8]Arndt e Gingrich, Greek-EnglishLexicon, s.v., 440.
[9]Observação exegética de A. T. Robertson e Alfred Plummer citada por F. Rienecker e C. Rogers, Chave Lingüística do Novo Testamento Grego, trads. Gordon Chown e Julio Paulo Zabateiro (São Paulo: Vida Nova, 1985) 297.
[10]Letha Scanzoni e Virginia Mollenkott, Is the Homosexual My Neighbor? (Nova Iorque: Harper & Row, 1978) 64.
[11]Veja H. Köster, “fusij, fusikoj, fusikwj”, Theological Dictionary of the New Testament, 9:253, e G. Harder, “Natureza”, Dicionário de Teologia do Novo Testamento, 3:255-61.
[12]Epicteto, Dissertações, 1:16:10.
[13]C. E. B. Cranfield, Carta aos Romanos, trad. Anacleto Alvarez (São Paulo: Paulinas, 1992) 45; ênfase deste autor.
[14]J. R. W. Stott, “Homosexual Partnerships: Why Same-Sex Relationships Are Not a Christian Option”, Christianity Today (22 de novembro de 1985) 11.
[15]Robertson McQuilkin, An Introduction to Biblical Ethics , 262.
[16]James D. G. Dunn, Romans 1-8 (Dallas: Word, 1988) 63-64.
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