Por Fernando Leite
A Bíblia apoia o estupro? (2)*
Em meu último post eu tive a pretensão de contrapor a mensagem do artigo ‘A cultura do estupro também descansa sob a sombra da nossa leitura bíblica’ (clique aqui). Hoje gostaria de abordar a questão do seu segundo parágrafo em que o autor afirma: ‘A CULTURA DO ESTUPRO está presente quando a gente consegue ignorar a história de uma mulher como Agar, negra, escrava de Sara e de Abraão, que é não só violentada pelo patrão, a pedido de sua patroa…’. Como ignorar a sua história contribuiria para a cultura do estupro, se nem estupro, nem violência é narrado na sua história?
Olhar de nossa cultura ocidental do séc. XXI, para a cultura de 4000 anos atrás no Oriente Médio Antigo, sem passar pela ponte da cultura não vai permitir entender os fatos e seu significado. O mesmo aconteceria e nos chocaria se víssemos e julgássemos a cultura primitiva ianomâmi dos nossos dias em nosso próprio país. O mesmo acontecerá daqui a 500 anos se as culturas futuras lerem nossa história sem sensibilidade cultural.
Precisamos atravessar a ponte cultural para entender essa história. Ainda que não seja empregado o termo ‘concubina’, Agar tornou-se uma concubina de Abraão. Não só ele a tinha como concubina, como também seu neto Jacó teve várias. Isso era realidade no OMA. Pouco diferente da esposa, a concubina era propriedade da senhora e do senhor dos escravos, e isso incluía direitos sexuais. Isso não era uma prática normatizada pela Bíblia, mas parte da cultura do OMA, dentro e fora de Israel, e até hoje no Oriente Médio a poligamia é realidade. Eu diria que a concubina não tem paralelo perfeito em nossa sociedade. Ela não tinha os mesmos direitos de uma esposa, mas a relação era ‘oficial’, diferentemente da amante dos tempos atuais. Dentro do próprio livro de Gênesis encontramos as esposas entregando suas servas para serem concubinas de seus maridos. Na hora dos privilégios ocupava o fim da fila, e na hora dos dissabores a frente. A razão era gerar filhos, o que era muito importante para as mulheres daqueles dias, e mesmo os filhos nascidos de suas servas entravam na contabilidade de suas senhoras.
Se julgarmos a realidade daqueles dias com o coração e as lentes contemporâneas, devemos nos entristecer por tudo que era a realidade da escravidão e do ser mulher. Entretanto, daí dizer que Agar foi violentada por Abraão tem muita distância, e se não foi violentada, dizer que a história da escravidão do OMA contribui com a cultura do estupro também tem distância.
O mesmo livro do Gênesis que registra essas histórias do OMA, também traz a norma do que seria uma família: ‘Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.’ (Gn 2.24) Veja que a família instituída por Deus é composta de (1) somente duas pessoas, (2) um homem e uma mulher e (3) os dois se tornam uma só carne. Segundo o plano de Deus não existe casamento com mais de dois e nem casamento de pessoas do mesmo sexo. Os desvios que se veem na sociedade antiga ou moderna não são de responsabilidade de Deus, Bíblia ou de sua leitura. Essa e tantas outras histórias narradas nas Escrituras descrevem a realidade da humanidade que se distancia de Deus. Em meio a esta realidade vemos as manifestações e intervenções misericordiosas de Deus. As narrativas da presença de Deus na realidade humana não endossam a degeneração humana, nem mesmo os desvios dos pais da fé como Abraão e Sara.
* Título Original. Texto retirado do Facebook.
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