Por Fernando Leite
A Bíblia apoia o estupro? (8)*
O artigo ‘A cultura do estupro também descansa sob a sombra da nossa leitura bíblica’ tem sido alvo de nossas considerações, e em seu penúltimo parágrafo cita a narrativa de Tamar (Gn 38). Ele diz que ela foi ‘abusada, violentada, sem direito sobre o próprio corpo… impedida até de partilhar do prazer e do gozo da relação que tinha…’
Em uma simples e isenta leitura desta narrativa vê-se que esta síntese é bastante desonesta com essa história bíblica. Primeiramente, não houve qualquer violência sexual. Há uma série de atitudes e ações da parte de Onã, Judá e da própria Tamar, que são bastante repudiáveis e que trouxe consequências amargas para todos os envolvidos. Seguramente ela foi grandemente prejudicada como mulher, mas eu diria que ela não foi a única, ela não levou a pior e ela foi mais do que vítima.
Tamar casou-se com Er, o primeiro de três irmãos, mas ele era perverso e o juízo de Deus veio sobre ele e sua vida foi tirada. Certamente ela deve ter sofrido por ser casada com um homem perverso, como sofrem homens e mulheres de nossos dias quando se casam com perversos. Embora pudesse haver, não há qualquer sinal de que Tamar tenha sofrido violência sexual e é possível que até tenha sido aliviada com a morte de seu perverso.
Uma vez viúva e tendo um cunhado, irmão de seu falecido esposo, a lei determinava que seu irmão gerasse um filho que seria tomado como descendente do falecido. Esse era Onã, que queria desfrutar do prazer sexual, mas que possivelmente calculava que se não gerasse descendente ao irmão, ele aumentaria substancialmente seu direito da herança do pai. Assim ele se relacionava sexualmente com Tamar, mas interrompia o ato antes do clímax e assim ela não era fecundada. Sua ação era má o suficiente para Deus também o julgar e tirar sua vida, mas novamente não se vê violência sexual como a descrita no artigo.
Judá tinha mais um filho mais novo, Selá, que deveria gerar a descendência a seus irmãos, mas Judá entendia que a morte de seus dois filhos devia se causada por Tamar. Ele não via a perversidade de seus filhos como suficientes para receberem o juízo de Deus. Assim ele argumentou com Tamar para que ela retornasse à casa de seu pai até que Selá fosse crescido, mas era somente um estratagema para poupar seu filho e a ignorou com o passar do tempo. Era maldade de Judá, sim; ele mesmo reconhece isso, mas não se tratava de violência sexual.
No último episódio desta narrativa, depois que Selá era grande o suficiente para ter assumido sua responsabilidade, Judá foi a negócios em Timna e Tamar foi informada disso. Ela trocou suas vestes de luto por vestes que a identificavam como prostituta. Ainda que coberta para não ser reconhecida, expôs-se a Judá que contratou seus serviços sexuais, mas uma vez que não tinha dinheiro para pagar, negociou deixar uma garantia que posteriormente seria resgatada. Assim ele transou com ela e ela engravidou de gêmeos. Posteriormente ele enviou quem a pagasse e resgatasse sua garantia, mas ela desapareceu, o que tornou impossível cumprir sua palavra. Este evento, embora tenha ocorrido pela falta de Judá em não cumprir sua palavra de dar-lhe Selá e por ter buscado uma prostituta; o mal foi da própria Tamar que trapaceou e se vendeu. Ainda que Tamar tenha sido a principal vítima de toda a narrativa, neste episódio ela foi a responsável pela trapaça e imoralidade. Não houve qualquer violência sexual contra ela.
Uma vez que a gravidez de Tamar tornara-se pública, Judá que ainda não sabia a origem de sua gravidez, toma medidas para que ela fosse julgada e condenada. Ela apresenta as garantias que lhe haviam sido dadas por ele, e ele reconhece que ainda que ela tenha sido injusta, ele foi pior do que ela e a sua autoindulgência o levou a ser compassivo com ela preservando-lhe a vida.
Nessa história tem pecados de várias espécies, principalmente de Er, Onã e Judá; mas não tomemos Tamar como uma simples vítima: ela foi mais do que isso. Por outro lado, não houve estupro ou algo próximo disso. Pode-se aprender dessa história? Claro que sim! Deve ser pregada? Com certeza! Mas tratar esta passagem como algo que diga que ela foi ‘abusada, violentada, sem direito sobre o próprio corpo… impedida até de partilhar do prazer e do gozo da relação que tinha…’ é uma reescrita da história sem vestígios significativos da original.
* Título Original. Texto retirado do Facebook.
Tags: Cultura do Estupro Fernando Leite Tamar
