Por Níckolas Ramos
O general romano Pompeu (106-48 a.C.) disse a seus amedrontados marinheiros: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. O contexto da frase era de crise. Caso não navegassem em busca de suprimentos, Roma padeceria. Assim, adentrar os mares era necessário, ainda que a vida dos navegantes fosse colocada em risco. Com o passar dos séculos, porém, a famosa frase tomou outros sentidos nas reinterpretações dos poetas. Fernando Pessoa, por exemplo, releu a expressão sob uma ótica de “precisão técnica” ao invés de “necessidade”. Afinal, a navegação depende de instrumentos complexos para obter sucesso. Trata-se de algo “exato”, com muita “precisão”.
A paráfrase que intitula essa pastoral, portanto, é mais uma releitura da célebre citação de Pompeu. De fato, perdoar é preciso — algo necessário — porque devemos agir como Deus agiu para conosco (Ef 4.32) e perdoar é preciso — algo exato — pelo fato de termos orientações claras na Escritura a respeito desse assunto. Assim, firmados na Palavra de Deus, é importante desconstruir algumas mentiras associadas ao perdão, para, depois, levantarmos uma sólida base bíblica sobre a questão.
Em primeiro lugar, perdão não é esquecimento. Se Deus não sofre de amnésia quando nos perdoa, como lidar com textos como Isaías 43.25 e Jeremias 31.34, nos quais ele mesmo afirma que não se lembrará dos pecados de seu povo?
Em ambos os casos, trata-se de uma figura de linguagem para ilustrar a graça e a misericórdia do Senhor. Em Isaías, por exemplo, “não lembrar” é sinônimo de “apagar”, ou seja, Deus não mais traz a juízo determinada questão porque já apagou aquele débito. Miqueias 7.18-19 garante que o Senhor lança os pecados no “fundo do mar”, não os trazendo mais à tona, enquanto o Salmo 103.12 também ilustra quão longe o Senhor afasta o pecado de nós. Em outras palavras, Deus não “joga em nossa cara” aquilo que fizemos. Aliás, essa deve ser a mesma atitude do crente quando o assunto é perdão (Pv 17.9).
Essa é a razão pela qual casais que afirmam se perdoar precisam de disciplina para, no meio dos desentendimentos, não reviver assuntos já resolvidos. Dizer “eu perdoo, mas não consigo esquecer” é sinônimo de “eu ainda alimento a causa em meu coração”, o que não reflete a ação graciosa de Deus para com o homem. Por isso, ainda que nos lembremos da ofensa cometida contra nós, não devemos trazer à tona o que já foi cravado na cruz de Cristo — seja em palavras ou na mente.
Outra consideração importante é que o perdão não é, necessariamente, uma recompensa pelo arrependimento alheio. Ainda que Lucas 17.3-4 apresente um ofensor arrependido, textos como Mateus 5.23-24 e Marcos 11.25 mostram que o perdão deve ser uma predisposição ativa no coração do crente, independentemente das ações da outra parte.
Como o próprio Deus não esperou um ato de arrependimento humano para nos salvar (Rm 5.10), cabe a nós, sempre que possível, dar o primeiro passo na direção da reconciliação e da paz (Cl 3.15), mesmo que isso implique prejuízo (Fm 18-19). Na prática, tal iniciativa pode se expressar em um convite ao ofensor para uma conversa franca, com o objetivo de resolver a questão de uma vez por todas (Pv 27.5-6), em amor (1Pe 4.8). Também significa que o crente não deve deliberar se perdoará alguém ou não, já que deve sempre nutrir uma predisposição graciosa em mente.
Por fim, perdão não é um sentimento. Ainda que a cultura ocidental valorize demais aquilo que sentimos, a cultura bíblica destaca o que fazemos. Normalmente, esperamos alguma sensação prévia ao perdão para, então, exercê-lo. Na Escritura, contudo, um sentimento legítimo associado ao perdão é o sofrimento (Lc 23.33-34; At 7.59-60; 2Tm 4.16) e não algo “bonitinho”.
De fato, graça, misericórdia e compaixão, ainda que envolvam expressões emocionais, não se limitam a isso. Aliás, prova dessa verdade é que Deus nos amou quando ainda estávamos debaixo da sua ira (Rm 5.8). O coração do homem, por ser pecaminoso (Jr 17.9), sempre desejará a retribuição pela ofensa. Não é possível que nasça nele qualquer “iniciativa amorosa” para com quem nos ofende. Portanto, o perdão que o crente experimenta começa em sua teologia e não em seus sentimentos (1Jo 3.20).
Mas, desfeitos alguns mitos a respeito do perdão, como podemos defini-lo biblicamente? Na sequência, veremos o quão precisa a Escritura é ao falar do assunto.
(Continua)
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