A minha forte impressão é que quanto mais se estuda as alianças estabelecidas ao longo da revelação bíblica menos aliancista (como sistema) o indivíduo se torna. Conceitos estranhos ao texto bíblico como o da “aliança da graça” atrapalham o intérprete de observar nuances de continuidade e descontinuidade entre as alianças estabelecidas no Antigo Testamento e que se desdobram no Novo Testamento. Bruce Waltke (“Teologia do Antigo Testamento”), por exemplo, ecoando a Confissão de Fé de Westminster, descreve a aliança da graça com base em Gênesis 3.15: “Ele [Deus] começa firmando uma aliança com os primeiros representantes da humanidade, a fim de lhes dar uma semente eleita capaz de derrotar o arqui-inimigo deles (Gn 3.15)” (p. 325). A primeira pergunta que o leitor sensível ao texto e seu contexto fará é: Se Gn 3.15 define a aliança da graça feita com Adão e Eva, por que ela é estabelecida em um discurso feito à serpente, e não a Adão, o representante federal? Ou seja, a primeira aliança de Deus com a humanidade não provém de um discurso direto a Adão e Eva, com os quais Deus fala na sequência (v. 16, 17-19), mas em uma palavra à serpente. Um jeito bem estranho de se estabelecer uma aliança, visto que a serpente é adversária da humanidade, e não sua representante. Se Deus quisesse fazer uma aliança com a humanidade, ele o faria na palavra dirigida a Adão em Gênesis 3.17-19, mas não é isso que o texto relata. Ao longo do enredo bíblico, Deus faz aliança com os representantes de um grupo da humanidade ou da humanidade como um todo, mas jamais com o adversário do grupo a que a aliança se destina.
O segundo aspecto bastante estranho do conceito de “aliança da graça” é que ela abrange todo o enredo do Antigo Testamento até Jesus Cristo (veja o cap. VII da Confissão de Fé de Westminster), deixando de observar distinções significativas entre alianças, como a mosaica e a nova aliança. Todos nós sabemos que a graça de Deus está presente em toda a narrativa bíblica (incluindo o período pré-queda). Não é esse o ponto aqui. A questão fundamental é que o próprio texto bíblico mostra que há descontinuidade na maneira de Deus administrar seu relacionamento com o homem na nova aliança e na mosaica, sendo ambas formas de aplicação da aliança abraâmica. O profeta Jeremias deixa claro o contraste entre aliança mosaica e nova aliança: “Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o SENHOR” (Jr 31.31,32). Ou seja, as duas alianças não são as mesmas, mas distintas, a ponto da nova aliança substituir a aliança mosaica. O apóstolo Paulo reconheceu isso em 2Coríntios 3. Ele contrasta seu ministério com o ministério da antiga aliança usando termos técnicos do AT para se referir tanto à antiga quanto à nova aliança: “estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações […] a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Co 3.3,5-6). Portanto chamar a aliança mosaica e a nova aliança de “aliança da graça” impede o indivíduo de observar as distinções que há entre alianças estabelecidas ao longo do enredo bíblico.
A solução é seguir o progresso da revelação bíblica, vendo como as alianças feitas com Abraão e por meio de Moisés estão relacionadas ou como a aliança davídica tem aspectos de continuidade e descontinuidade com a aliança mosaica. Uma boa teologia bíblica deve preceder uma boa teologia sistemática, se invertermos o processo, faremos o texto das Escrituras apenas refletir nossos pensamentos e sistemas, quando o correto seria nossos sistemas e teologia refletirem o texto bíblico.
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