Por Isaque Sicsú
Durante bastante tempo, Mateus 7.1 “Não julgueis, para que não sejais julgados” foi o brado de alforria daqueles que não queriam ser questionados em suas vidas carnais. Era mais ou menos assim: Um fulano ou fulana pisava na bola publicamente e, de repente, seus advogados de defesa já usavam esse texto para defender e justificar aquele que eventualmente pisou na bola. Não faz muito tempo, uma cantora gospel famosa teve sua dependência química e vida promíscua exposta, e não demorou muito para a turma do “não julgueis” aparecer pra justificar.
Hoje, esse texto é o brado dos incautos que desejam justificar seus falsos mestres e líderes inaptos. Recentemente, repostei em minha página no FB uma crítica a um determinado líder por sua evidente distorção das Escrituras e falta de zêlo doutrinário, e não demorou muito para a turma do “não julgueis” aparecer. Impressionante a cegueira e absoluta falta de racionalidade na argumentação apresentada. Agora, o que marcava o discurso de todos era: “não julgueis!”, “só Deus pode julgar!”, etc.
A pergunta que se levanta, portanto, é simples: É legítimo usar o texto de Mateus 7.1 para defender alguém que esteja sub judice em sua prática de vida ou ideias expostas? Vejamos.
O verbo traduzido por “não julgueis” em Mateus 7.1 é o verbo κρίνω. Esse verbo aparece 114 vezes no Novo Testamento e seu significado básico é “separar”, “fazer distinção/seleção” ou “preferir” (cf. BDAG). Esse verbo também pode ter outros quatro sentidos:
1. O primeiro sentido é a ideia de chegar à uma conclusão depois de um processo racional e cognitivo (decisão, intento, propósito). Atos 3.13 diz: “O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a seu Servo Jesus, a quem vós traístes e negastes perante Pilatos, quando este havia DECIDIDO (κρίναντος) soltá-lo”. A passagem mostra claramente que Pilatos havia decidido soltar Jesus, mas foi persuadido pelos líderes de Israel para crucificá-lo.
2. O segundo sentido é a ideia de estar envolvido em um processo litigioso em tribunal. Mateus 5.40 diz: “E, se alguém quiser PROCESSÁ-LO (κριθηναι) e tirar de você a túnica, deixe que leve também a capa”. A ideia da passagem é simples: Jesus diz que se alguém deseja processar um cristão, tirando-lhe seus bens de maneira injusta, ele deve estar disposto a assumir o dano.
3. O terceiro sentido é a ideia de emitir um juízo tomando por base fatores externos (considerar, pensar, arrazoar). Atos 26.8 diz: “Por que os senhores ACHAM (κρίνεται) impossível que Deus ressuscite os mortos?”. Aqui, Paulo está diante de Agripa e pergunta a razão, o fundamento, a consideração que baseia a descrença dos judeus na ressurreição.
4. Por último, o verbo κρίνω tem o sentido emitir um julgamento (expressar uma opinião) que visa influenciar a vida e ações de outras pessoas. 1 Coríntios 10.29 diz: “… porque minha liberdade deve ser JULGADA (κρίνεται) pela consciência dos outros?”. No contexto, Paulo está demonstrando que por causa dos fracos na fé, devemos nos abster de algumas práticas que eventualmente podem gerar tropeço a esses irmãos.
Tendo em vista todo o campo semântico do verbo κρίνω, qual o sentido correto em Mateus 7.1? A resposta é simples: Jesus está usando o verbo neste sentido último: Devemos nos abster de emitir julgamentos e emitir opiniões que não sejam fundamentadas. O que está sendo condenado nesta passagem é o juízo temerário, a acusação sem provas, pela mera aparência.
Em diversas outras passagens, entretanto, somos chamados a fazer julgamentos:
João 7.24, seguindo a mesma ideia de Mateus 7.1, diz: “Não julguem apenas pela aparência, mas FAÇAM JULGAMENTOS JUSTOS”. A ideia do texto é simples: Como cristãos, não podemos julgar uma pessoa de maneira temerária, devemos julgar com base e fundamento. Só essa passagem já chuta na lua o papinho do “só Deus pode julgar”, pois o Deus da Palavra manda julgarmos.
Paulo em 1 Coríntios 11.13 convida os cristãos de Corinto a fazerem um julgamento acerca de usos e costumes: “JULGUEM entre vocês mesmos: é apropriado a uma mulher orar a Deus com a cabeça descoberta?”.
Ao apresentar o veredito sobre o homem que tinha um caso com a mulher do próprio pai, Paulo diz: “Apesar de eu não estar presente fisicamente, estou com vocês em espírito. E já CONDENEI aquele que fez isso, como se estivesse presente” (1Co. 5.3).
Finalmente, o próprio apóstolo Paulo deseja ser julgado em seu ensino pelos coríntios: “Estou falando a pessoas sensatas; JULGUEM vocês mesmos o que estou dizendo.” (1 Coríntios 10:15)
Portanto, essa conversa de “não julgueis” é a conversa comum de dois tipos de cristãos: (1) São os carnais que não querem se arrepender de seus erros e falhas para continuar fundamentando o engano e carnalidade, ou (2) incautos que precisam ser instruídos para que não sejam enganados e por ignorância assumam uma vida/mentalidade que desagrada a Deus.
Sim! Neste texto está sendo expresso um julgamento. Durma com esse barulho.
Copiado do Facebook do autor.
